O debate sobre religião sempre se "renova" de tempos em tempos. Nesta segunda-feira, 22, começou a nova novela de Glória Perez, Salve Jorge,
no horário nobre da Globo. E, claro, o termo originário dos cultos
afrobrasileiros incomodou muita gente. São Jorge, que segundo a lenda
cristã matou um dragão e vive na Lua, é sincretizado como Ogum, o orixá
guerreiro.
Circularam pelo Facebook as típicas imagens combinadas com texto
alertando aos cristãos do perigo que a expressão "Salve Jorge" poderá
acarretar à integridade espiritual de cada fiel. Até aí, tudo bem, se
você ler a mensagem apenas pelo viés do "querer bem aos semelhantes".
A mim incomodou bastante. Primeiro, porque em toda a mídia nenhum
babalorixá ou ialorixá sai esbravejando que os cultos cristãos são
"demoníacos", nem andam chutando santas ou fazendo piadas de práticas
inusitadas como por um copo d'água em cima da televisão enquanto o
pastor ora do outro lado. Nenhum representante das religiões de matriz
africana tem aparato suficiente para responder na mesma proporção ao
dano causado à imagem desses cultos. É um combate desigual e injusto.
Segundo, porque a mensagem subliminar apregoa que tudo que vem da fé
africana é um mal a ser combatido, resultando em segregação aos
praticantes, em geral negros e pobres habitantes das periferias.
Esse tipo de proselitismo só aprofunda ainda mais as desigualdades
sociais, disseminando uma ideologia nefasta, que leva, inclusive, ao
desrespeito ao Estado laico e atenta contra a liberdade de culto
prescritos na Constituição brasileira de 1988 (não confundir com 1889,
um ano após a Abolição).
A intolerância religiosa persiste, enquanto o mito da cordialidade
brasileira se torna mais espúrio. Como também afirmar que onde os
cristãos são minoria eles são perseguidos não legitima seus atos por
essas bandas e vice-versa. Mas no Brasil, país republicano, de maioria
cristã, a religião ainda é usada como meio reprodutor da casa grande e
senzala. É nisto que persisto.
O cristianismo padece de críticas por estar numa posição hoje de
opressor das religiões afrobrasileiras, no contexto em que vivo. Isto
não quer dizer que todos os cristãos são assim, contudo aqueles que
divulgam mensagens denegrindo a fé trazida nos navios negreiros têm,
sim, culpa no cartório, em especial os estelionatários que ocupam horas
diárias nas grades das TVs abertas.
Quero ressaltar que não defendo aqui a "propaganda que a Globo faz" do candomblé ou umbanda através da novela Salve Jorge,
nem do kardercismo como fizera outrora. Está aí em cima, no meu perfil:
agnóstico, que na minha definição idiossincrática significa "tô nem aí
pra religião". Mas eu me indigno muito quando a religião ou qualquer
outra coisa é usada para diferenciar negativamente as pessoas num estado
democrático. Favor não confundir isto como um lamento de quem "posa de
vítima", isto aqui é um ato de resistência.
Também não quero usar este espaço como veículo de "proselitismo cético",
pois isto é uma contradição em termos, como diria Renato Russo.
Agnósticos e ateus não precisam pregar sua descrença, uma vez que não
formam uma religião, não necessitam de dízimo, oferta, nem cobram por um
trabalho que não o profissional.
Mas sou sensível à beleza do misticismo, sobretudo quando se realiza
como expressão popular (talvez assunto para outra postagem), tal qual na
imagem acima.
Infelizmente, a sociedade brasileira ainda não entendeu que há espaço
para todos, que existem alternativas ao projeto monocultural do
neoliberalismo. Que o protestante, o católico, o sincretista, o budista,
o índio fazem todos parte de um fenômeno universal metafísico, fruto da
relação limitada entre homem e natureza que a ciência a passos miúdos
vem desvendando. O mistério ainda é maior.
Salve à resistência! Salve à diversidade! Salve à coexistência!
Blog 10inquietos
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