18.6.2010, União dos Palmares. Manhã de sexta-feira. Da varandinha no apê do Loteamento Jaguaribe, primeiro dei uma de Mister Magoo, o personagem míope do desenho animado: “Estou vendo o rio daqui!”. Depois saí para a tradicional caminhada. No Beco do Roncador, por onde sempre passava, encontrei muita água. Resolvi, então, ir pela rua principal. Nela, a ficha caiu: muita lama entremeada, entre outras coisas, com produtos de lojas e mercadinhos.
Continuei a caminhar em meio ao cenário de guerra. Encontrei meu amigo João Nunes. A palavra tragédia na primeira frase. Vimos um corpo sendo retirado do canal, que hoje cruza a rua “Mata-Quatro”, mas já foi o rio Cana Brava até os anos 1980. À esquerda, lembro a altura da água quase a cobrir um simulacro de outdoor. Resolvemos ver o que acontecera nas margens do Mundaú. Duas ruas, Ponte e Jatobá, sumiram. Encontrei Reinaldo de Sousa, professor da UNEAL, que tirava fotos com seu celular. Ele as recuperou, a meu pedido, na galáxia virtual. Entre tantas, guardo a imagem do capô de um carro repleto de documentos e álbuns enlameados. Ergui os olhos para a outra margem e vi a cena só conhecida na TV: o telhado de uma solitária casinha.
Ali, sim, bateu a real: testemunhava a maior enchente em algumas cidades da Zona da Mata Alagoana, inclusa a União dos Palmares de Zumbi e Jorge de Lima. A volta ao apê revelou novas facetas: estava sem energia. Sem ela, não tinha banco. Sem ele não tinha grana. Além disso, adeus celular! Voltar para Maceió estava fora de cogitação, pois as pequenas pontes na BR-104 estavam cobertas. Na condição de aliado de Noé, só pude reencontrar os braços da bem-amada no domingo à tarde.
Depois chegaram os relatos impressionantes sobre mortes, sumiços e sobrevivência: moradores do Muquém, reduto quilombola, passaram a noite inteira em uma jaqueira. Alguém se salvou agarrado a um botijão de gás; outro a uma tora de madeira. Antes de qualquer palavra, essas cenas já são o mais puro cinema. Outro impacto da força das águas resultante da junção entre a chuva e o romper de uma barragem em Pernambuco: arrastou gigantescos tanques de usina.
Também me tocaram os relatos sobre a perda ou o esforço para salvar livros e material escolar, sobretudo entre alunos da UNEAL. Antes que algum aventureiro lance mão, é minha a ideia de fazer um documentário pegando seus depoimentos. Já tenho até o título, “Palavras molhadas”, com a mesma técnica do documentarista Eduardo Coutinho: fundada na conversa e no à vontade do entrevistado.
Aos que perderam tudo, ainda restava buscar forças para atravessar a condição de desabrigado e esperar a aranhosa solução oficial para adquirir uma nova morada nos arredores da cidade. Pelos dois anos seguintes, a fileira de barracas, onde muitos passaram a viver, nos dava a noção do que é ser refugiado no seu próprio chão.
“Naquela fatídica manhã de sexta-feira...” Ouvi essa frase na voz de Gilvan Fontes, apresentador de telejornal, sobre o desabamento do Mercado das Verduras em Aracaju. Numerólogos, espiem a data: 18.6.1977. A frase voltou com toda a força na enchente de União. E assim se passaram dez anos. De alguma forma, aquela trágica experiência, que mexeu com o individual e o coletivo, foi um ensaio para a tragédia que hoje nos assola em escala global. Aquela sexta palmarina também foi marcada pela despedida de José Saramago, o criador de Ensaio sobre a cegueira. Uma narrativa visceral sobre a fragilidade humana perante o desconhecido. Hoje ela reverbera na divulgação diária de números assombrosos que promove, principalmente entre pobres e negros, o apagamento de suas experiências no curto milagre da vida.