Reportagem de Julho de 2013
RIO - Eternizada como um ícone da revolução sexual graças a filmes
cultuados como “Os amantes” (1958) e “Jules e Jim — Uma mulher para
dois” (1962), a diva francesa Jeanne Moreau anda atenta às recentes
manifestações no Brasil, país onde fez grandes amigos nos anos 1970.
Aqui ela filmou “Joanna Francesa” (1973), de Cacá Diegues, em Alagoas.
Voltou em 2009, para o Festival do Rio. Agora, ela poderá ser vista
novamente nas telas nacionais à frente da produção “Uma dama em Paris”
(“Une estonienne à Paris”), de Ilmar Raag, em pré-estreia hoje (e
durante toda a semana) no Estação Rio 3, às 17h50m. Mas, saudades à
parte, a atriz de 85 anos encara as passeatas em território brasileiro
como o indício de uma corrente de protestos políticos que, nos próximos
meses, pode se espalhar em escala global. Essa hipótese ela baseou em
suas memórias de 1968, quando viu o mundo inteiro comungar de um
sentimento revolucionário iniciado a partir da inquietação de jovens em
Paris que, num piscar de olhos, varreu o mundo. Nesta entrevista por
telefone, ela dá seu apoio à juventude nas ruas, avalia o cinema francês
atual e filosofa sobre a morte.
Nos anos 1960, a
senhora simbolizou a liberdade, sexual e afetiva, para a juventude que
foi às ruas protestar. Como a senhora vê a juventude de hoje, em
especial os jovens brasileiros, unidos em protestos por todo o país?
Se
eu não tivesse a idade que tenho e estivesse aí, estaria nas passeatas
ao lado deles. O que está acontecendo agora no Brasil, país tão querido
para mim, é só um começo de algo que vai se espalhar pelo mundo como uma
explosão. Sabe por que acredito nisso? É porque quem manda na política
internacional hoje são os bancos. No momento em que o mundo vive sob um
“regime bancário” de governo, uma crise econômica, como a vivida hoje na
Europa, é uma fonte de desequilíbrio político. Como acreditar em
harmonia se os bancos deixam a economia de um país falir? Os jovens
foram às ruas porque as pessoas que estão no poder agem em prol do
dinheiro e não do bem-estar alheio.
O que houve de diferente nos protestos de 1968?
Muitas
coisas, a começar pela afirmação da liberdade sexual. E isso se reflete
no cinema. Nos anos 1960, você jamais veria um filme sobre a paixão
entre duas mulheres como “La vie d’Adèle — Chapitre 1 & 2” (longa que rendeu a Palma de Ouro ao franco-tunisiano Abdellatif Kechiche no Festival de Cannes, em maio).
É um filme maravilhoso, mas que reflete um novo tempo, no qual as
relações entre homens e mulheres parecem desinteressantes. Em 1968, o
cinema ainda falava da mulher como um objeto do desejo masculino.
A senhora tem medo do que a França possa sofrer se começar a haver protestos por aí?
Eu não tenho medo de nada. Não tenho mais idade para isso.
Nem da morte? Não é estranho para alguém que vive há seis décadas como um mito pensar em morrer?
Não
importa o que eu seja no imaginário alheio: mito, diva. Eu sou apenas
mulher. E como qualquer mulher, aliás, como qualquer ser humano, vou
morrer um dia. Estou me preparando para a chegada da morte. Quero apenas
saber que deixei tudo em ordem, na minha casa, na minha vida e mesmo no
cinema, antes de partir.
O que significa “deixar
tudo em ordem no cinema” para alguém que filmou com diretores como
François Truffaut, Louis Malle, Orson Welles? O que a senhora aprendeu
com eles?
A cada vez que faço um filme, aprendo
muito mais sobre mim do que sobre cinema, ou sobre o mundo. Atuar para
um filme é um ato de descobrir mais sobre sua própria natureza
projetando-a em um personagem. Eu sou um mistério para mim. Eu filmo
para ter uma ideia mais precisa do que sou. Sobre “deixar tudo em
ordem”, no cinema, é ter a certeza de que trabalhei com diretores que
valorizaram o papel da mulher na sociedade.
Esse é o caso de “Uma dama em Paris”, em que a senhora vive uma imigrante da Estônia às voltas com um amor do passado?
“Uma
dama em Paris” são as memórias de uma mulher que deixou a Estônia na
pobreza e sobreviveu na França com dificuldade, com a ajuda dos homens
que conheceu e daquele por quem se apaixonou. Não penso que seja um
filme sobre solidão, como algumas pessoas dizem, e sim um filme sobre a
realidade de alguém que deu adeus ao sexo, mas não ao amor.
Há
dois filmes seus ainda inéditos para estrear no Brasil: “La Duchesse de
Varsovie”, de Joseph Morder, e “O Gebo e a sombra”, de Manoel de
Oliveira. A senhora mantém uma produtividade invejável, atuando em uma
média de dois longas por ano. Como avalia o cinema feito hoje na França?
Há
muita coisa sendo produzida e você se depara como filmes incríveis como
“La vie d’Adèle”. Mas o que lamento no cinema contemporâneo, de modo
geral, é que as relações sexuais no cinema vêm se vulgarizando num ponto
que beira a estética pornô. É assim em todo canto. Quando comecei, os
diretores tratavam as mulheres nas telas com mais poesia, mesmo pelo
viés sexual. Essa história de me enxergarem como mito só me interessa
num ponto: saber que apareci em um momento no qual havia diretores
interessados em falar da força da mulher. E eu servi a esses cineastas
da forma que pude. Hoje, o cinema se “masculiniza” de uma forma
estranha. Você vê mais filmes sobre homens, sobre cobiça, sobre riqueza.
Onde fica a mulher nisso?
Fonte: O Globo
Jeanne Moreau com o diretor Cacá Diegues e a capa do filme Joanna Francesa que teve cenas gravadas em União dos Palmares.
Fotos do filme.
Trecho de Joana Francesa, filme de 1973, de Cacá Diegues.
Letra e música de Chico Buarque, trilha sonora do filme Joanna Francesa, na voz Jeanne Moreau.
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