Carlos Méro, escritor e presidente da Academia Alagoana de Letras,
mestre na língua francesa, apresenta para uma seleta plateia francesa a
essência e forma do poema de Jorge de Lima.
1. COMEÇOS: O RUMO DA CONVERSA
A representação poética do negro em terras brasileiras, a contar da infância da Colônia e até meados do Século XX, quase que só era visível pela voz do homem branco, ressalvadas as presenças pontuais, embora negligenciadas e quase ignoradas por seus contemporâneos, de poetas afro-descendentes da estatura de Caldas Barbosa (1739/1800), Maria Firmina dos Reis (1825/1917), Luiz Gama (1830/1883) e Cruz e Souza (1861/1898), entre outros tantos.
E a cada momento uma inclinação determinada.
De princípio (isso ao correr do Século XVII) foram ouvidos os versos depreciativos e mesmo ultrajantes (“ muitos mulatos desavergonhados/trazidos pelos pés os homens nobres”) de Gregório de Matos (1636 – 1696. Depois, já ao correr da centúria seguinte, aqueles epicizantes de Santa Rita Durão (1722 – 1784) e de Basílio da Gama (1740 – 1795), porém a só cuidarem dos negros enquanto combatentes ao lado dos brancos e a defenderem os interesses do Trono Lusitano: Durão, em Caramuru, a louvar Henrique Dias, herói da Guerra Holandesa em Pernambuco; Gama, em Quitúbia, a celebrar Domingos Ferreira da Assunção, notabilizado durante a Guerra Preta.
Mais tarde, já no século XIX, chegou a vez de Gonçalves de Magalhães (1811 – 1882) e de Castro Alves (1847 – 1871), ambos apiedados dos negros, ao sopro do romantismo, diante das feridas neles abertas pelos ferrões da extradição, do exílio e da opressão: Magalhães enternecido, afetuoso e contido; Castro Alves, o condoreiro, arrebatado, combativo e grandiloquente.
Com Jorge de Lima (1893-1953), então, uma singular mudança de rumos, ainda que se queira admitir que se mostrava ele vulnerável ao bafio da casa-grande, logo à perspectiva espezinhadora do colonizador, ao menos em parte da sua obra.
É o caso, a propósito, do seu poema “Essa Negra Fulô” (LIMA, 1997:255), pela primeira vez publicado pela editora Casa Trigueiros, em Maceió, no ano de 1928, quando, depois de andejar pelo parnasianismo adotou ele o modernismo, meio do caminho até mais tarde aderir ao surrealismo, aliás com ressonâncias proustianas.
Pois é justo contra a representação ali trazida da mulher negra, até por entendê-la enxergada por Lima com olhos cristãos e em tudo e por tudo alheios à negritude, que Oliveira Silveira (1941-2009), também vate brasileiro, porém afro-descendente, contemporâneo e cognominado Poeta da Consciência Negra, compôs, em um exercício de explícita intertextualidade, o poema “A Outra Nega Fulô” (SILVEIRA, 2008:110).
Estariam ambos a cuidar da mesma mucama imaginária?
Até que ponto, por conseguinte, na verdade se distanciam ou verdadeiramente se conflitam os seus olhares poéticos, no que diz com a representação da mulher negra?
Seria suspeitosa a representação tecida por Lima, pois que a falar como branco, logo como integrante de estamento social de elite, ou ambas, já que a visão identitária de Silveira poderia estar infectada por seu comprometimento étnico?
É o que ora se pretende decifrar.
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2. O AFRO-BRASILEIRO NA LÍRICA DE JORGE DE LIMA
Jorge Mateus de Lima, pelo que dele dizem os seus biógrafos, era neto de um Senhor de Engenho, tendo eclodido a sua vocação poética ainda miúdo, quando, um certo dia, fora levado a visitar a Serra da Barriga, cenário em que surgiu, ensaiou progredir e foi finalmente esmagado o Quilombo dos Palmares.
Demais disso, embora nascido após a abolição da escravatura (já que esta acontecera em maio de 1888), Jorge conheceu a infância sob os zelos e os mimos de Celidônia, de quem diria, em “Ancila Negra” (LIMA, 1997:305), “linda moleca ioruba”. Ela que, entre tantos outros negros e negras legalmente libertados, não se sentiam encorajados para ganhar a estrada e procurar nova vida, eis que a não divisarem meios e perspectivas que lhes assegurassem as próprias sobrevivências. E era bem por isso que se resignavam a permanecer dependentes dos seus antigos senhores e portanto a servi-los, por vezes em vexatória condição de atípico porém quase igualmente degradante cativeiro.
Era então Celidônia quem o banhava, quem o vestia, quem o cobria de dengos, quem o fazia dormir com histórias de bichos e de reinos remotos, quem o pajeava nas suas idas e vindas entre a casa e a escola, quem o acariciava, quem o consolava, quem o beijava com seus lábios roxos, quem talvez o iniciava em prematuras vadiações sexuais. E em se dando que ela um dia se afogou no Rio Mundaú, sem ter avisado ao poeta que escolhera morrer, confessa ele, ainda em “Ancila Negra”, que o teria deixado:
[...] parado em pequeno,
mandigando e dormindo,
muito dormindo mesmo.
Mas o fato é que a imagem dela ficou a tal ponto grudada na sua memória que, segundo depoimento de José Fernando Carneiro, inundava-lhe as costumeiras e caladas noites de insônia, estando o seu nome, mais tarde, constantemente em sua boca, quando já estava ele cumprir os seus derradeiros dias de vida. (apud ILARI, 1991:8).
Não seria de surpreender, por conseguinte, que seu universo lírico (já homem feito) estivesse contagiado pelas tardias, é certo, contudo por ele de feito vivenciadas reminiscências da casa-grande e da senzala.
Por isso mesmo, segundo algumas leituras do seu poema “Essa Negra Fulô” (e aqui o termo Fulô revela corruptela prosódica do vocábulo Flor), teria pesado sobre Lima, enquanto a compô-lo, a nódoa de se denunciar impregnado, ainda que não deliberadamente, pela ótica preconceituosa que ressoava desde as sombras da escravidão. Visão, enfim, como que saudosista dos abusos do relho, do tronco, da máscara de folhas de flandres e da cativa objeto sexual, o que remetia a uma consciência do negro como elemento exótico, inferior e até mesmo pitoresco.
Mas em meio a tudo isso (há ainda quem ressalte) uma vigorosa fixação derramada sobre o corpo sensual e as promessas eróticas das mulheres negras. Talvez, convenha-se, brotada de sua suspeitosa convivência com Celidônia, “anjo negro degradado para sempre”, cuja ausência apagou “os signos do regresso”, enquanto que “tudo ficou como um sino ressoando”, segundo também suspira em “Ancila Negra”.
Certamente, porém, herdada dos dias das suas escapadas, ainda na meninice, no rumo das margens do mesmo Rio Mundaú em que ela se afogara, onde se punha Lima a furtivamente se deliciar na contemplação do corpo ebâneo de “Zefa Lavadeira” (LIMA, 1997:301).
Aquela “Zefa Lavadeira” que, enquanto lavava cada peça da trouxa de roupa, arrojando os panos contra a pedra de bater, nem se dava conta de que lá estava ele, estático, sem dar um pio sequer, com os olhos presos nas suas axilas que se cobriam e se descobriam, “piscando a tentação de arrochos e rendições cheias de saciedade” (op.cit.1997).
Logo depois, então, o deslumbramento, quando “Zefa Lavadeira”, em se acreditando só, “ia despindo as belezas selvagens de ninfa cafuza” e assim expondo o seu corpo “só vestido do manto de pele negra com que nascera”(idem,ibidem).
Mas também, pelo que se vê no mesmo poema, havia um mundo de “outras negras”, com seus “seios pontudos” e suas “nádegas rijas”, as mãos côncavas na espera da espuma de sabão que se despenhava entre os peitos e escorria pelo ventre até as coxas, de onde era suavemente transportada aos segredos dos “sexos em que a África parece dormir o sono temeroso de Cam”.
Mais tarde, reconheça-se, Jorge de Lima se reinventaria, reinventando a representação do afro-brasileiro, até empurrado por uma mentalidade inovadora inaugurada pelos seguidores da escola modernista e escritores canônicos, esta a ter na mira o testemunho da contribuição da negritude para a edificação da identidade brasileira, o que se expõe indispensável para que se promova a internalização, pelo negro, da noção de pertencimento cultural.Perspectiva, aliás, que já vinha contagiando a música de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e as criações pictóricas de Di Cavalcanti (1897-1976) e de Tarsila do Amaral (1886-1973).
E foi então, com as composições reunidas na coletânea Poemas Negros, que só viria a ser publicada em 1947, que definitivamente surgiu o Lima contritamente comprometido com o negro e com as suas tradições, crenças e superstições, costumes e meizinhas, falares e mandingas, temperos e iguarias, com os seus fetiches e os seus desencantos, no que procuraria, agora sim, verdadeiramente resgatar a então banalizada cultura negra.
Mas isso é coisa que veio depois da Negra Fulô, pelo que não vale a pena agora considerar.
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3. A LIMIANA NÊGA FULÔ
A Negra Fulô do poema de Jorge de Lima, ao ficticiamente chegar ao banguê de um seu avô, é só por só por ele enxergada qual insignificante “negra bonitinha”, como se não mais fosse que um objeto de adorno ou de utilidade doméstica (logo coisificada e portanto despersonalizada), que era trazido para decorar o cenário da casa-grande e para satisfazer a cada um dos caprichos do Sinhô, da Sinhá, dos Sinhozinhos e das Sinhazinhas.
Por isso mesmo, já a seguir a notícia da sua serventia e da sua servitude, quando forra a cama da Sinhá, quando lhe penteia os cabelos, quando a ajuda a trocar de roupa, quando abana o seu corpo sempre que ela sente calor, quando lhe coça as coceiras, quando lhe cata cafunés, quando lhe balança a rede e até lhe conta histórias da carochinha (ou não) a cada vez que bate nela aquela vontade danada de pegar no sono.
Isso para não falar do engomar e do alisar com ferro quente as roupas do Sinhô, bem como, a cada boca da noite, do tanger as crianças para a cama e fazê-las dormir, deveres suplementares que também eram sacudidos nos costados de Fulô.
É quando se dá conta a Sinhá de que sumiu um seu frasco de cheiro, um daqueles que lhe foram presenteados pelo Sinhô, pelo que de pronto intuiu ela que fora Fulô quem o roubara, apressando-se em ordenar que o feitor a chicoteasse. E o Sinhô, sensível ao angustiante sentimento de perda da Sinhá e talvez sinceramente indignado, foi ele mesmo presenciar a encenação do castigo. Só que ficou de boca aberta, estatelado, quando assistiu surpreso à inteira e fascinante nudez da mucama.
Um outro dia, logo não muito mais tarde, já deu a Sinhá pelo desaparecimento de um lenço de rendas, de um cinto, de um broche e de um terço de ouro da Virgem Maria, também agrados igualmente vindos do carinho, da generosidade ou das engabelações do Sinhô.
Novamente, então, a culpa presumida e a sumária condenação de Fulô ao espancamento. Agora, porém, decidiu-se o próprio Sinhô a aplicar, ele pessoalmente, o degradante corretivo na cativa, por certo já antevendo, cobiçosamente, o quando o resto do mundo seria encoberto por suas curvas voluptuosas.
Foi quando aconteceu o que seria de se esperar...
Ao ver Fulô, outra vez, desvestir-se do cabeção e da saia, encolhendo-se nua como veio ao mundo, o Sinhô sentiu o fogo que lhe esbraseou as entranhas, perdeu o juízo, azuniu a chibata, agarrou a mucama e, quanto ao resto, nem é preciso que agora se diga. Só haveria de dar, como deu, no choroso lamento de uma Sinhá ferida e enciumada:
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
E logo:
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?
Um poema, pois, segundo a apreciação de alguns, em que Jorge de Lima se valera de um olhar lírico sentado em estereótipos pejorativos enraizados na etnia e na sexualidade, pois que a enxergar a negra como gatuna, lúbrica, maliciosa, matreira e subserviente, isto é, segundo a receita do homem branco, assim como ditada pelos ecos da escravidão.
Não bastasse, no que até fugiria à contextualidade, a fazer parecer que fora ela a manhosamente seduzir o Sinhô (ao ponto de roubá-lo da Sinhá) e não de que fora o Sinhô, de relho na mão, a lhe impor a submissão aos seus impulsos libidinosos.
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4. A SILVEIRIANA OUTRA NEGA FULÔ
Tomando-se, agora, o poema “A Outra Nêga Fulô”, obra do afro-descendente Oliveira Silveira, mais do que diversa é a representação que se surpreende da mulher negra, estando mesmo a conter, no particular, indissimulável contra-discurso.
O que é evidenciado, aliás, quando já inegavelmente se debruça Silveira sobre a mesma Negra Fulô, fruto da criação lírica de Jorge de Lima, embora prefira nomeá-la Nêga Fulô, no que, sincopando o primeiro termo, propositalmente abraça a pronúncia popular e corrompida da palavra Negra.
E é isso tanto verdadeiro que, se de começo a aponta como a outra Nega Fulô, mais do que ligeiro se arrepende para admitir seja a mesma:
O sinhô foi açoitar
a outra nêga Fulô
- ou será que era a mesma?
Aliás, até assume Silveira postura desafiadora e provocativa quando, no corpo da composição e através da voz que empresta ao Pai João, não só assevera que vem aquela releitura “prá escândalo do bom Jorge”, como a este alfineta ao qualificá-lo como “seminegro e cristão”.
O que vem a dizer que o denuncia desautorizado a falar sobre a negritude e muito menos em nome dela, pois que além de a ela não pertencer (seja pela pele, seja pela idoneidade do sangue, seja pelas tradições), ainda por cima é cristão, logo do mesmo universo daqueles que, por séculos a fio, vilmente apresaram, maltrataram, escravizaram e oprimiram a gente africana, chegando ao desvario de lhe negar a humanidade.
Tenha ou não tenha razão Silveira quanto a este ponto, ou esteja a ser empurrado por arroubo xenófilo, compreensivelmente plantado em sua ancestralidade, a verdade é que ostensivamente opósito é o perfil que traça da mesma mucama, eis que ao reescrevê-la, por sobre a criação de Lima, finda por mitificá-la.
Para Silveira foi sim o Sinhô açoitar a mucama, instigado, é certo, pelo temerário veredito da Sinhá, embora cale o poeta sobre as más intenções que já poderiam estar a provocá-lo, visto que era comum ser desnudada a cativa a ser surrada.
Também não nega o poeta que, como era de se esperar:
A negra tirou a saia
a blusa e se pelou.
E nem mesmo que:
O Sinhô ficou tarado
Largou o relho e se engraçou.
Só que é ela bem diferente da limiana Negra Fulô, pois que altiva e não servil, voluntariosa e não subserviente, senhora do seu corpo e não objeto benevolamente entregue aos apetites libidinosos do Sinhô, decidida em suas escolhas e não sufocada por acovardada indulgência.
E sendo mulher, enfim, mulher negra consciente da sua humanidade, bravamente repeliu o estuprador, aproveitou-se de um pedaço de pau que estava por perto e o espancou até quando ele finalmente se extinguiu.
E mais tarde a angústia da Sinhá:
- Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A Sinhá burra e besta perguntava
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
- Ah, foi você que matou!
A Sinhá, pois, aqui desprovida de discernimento e comparada a burras e bestas, no que animalizada tal qual os brancos animalizavam os negros, enquanto que o Sinhô, seu marido, já não é dádiva de Deus, mas sim obra das artes do diabo em pessoa, pois que só assim, aos olhos do poeta, para que lhe fossem justificadas a arrogância, a depravação e a crueldade.
Foi quando Fulô, que já havia tomado rumo incerto e não sabido, escutou à distância a irada e ao mesmo tempo lacrimosa e condenatória interpelação da Sinhá. E de pronto acintosamente confirmou:
- É sim, fui eu que matou –
disse bem longe Fulô [...]
E tendo assim confirmado o crime ao negro retinto que com ela escapava, foi com ele se acasalar no meio da mata.
Só não há notícia de que se tenham encantado de vez no meio do mundo, sem que nunca mais fossem encontrados. Sim, pois que também possível que Fulô e o negro escolhido e que lhe assanhava os desejos, mais cedo ou mais tarde, tenham sido apresados por algum Capitão do Mato, amarrados na ponta de alguma corda, como se fossem bichos, arrastados de volta ao banguê e ali (quem sabe?) muito mais do que só brutalmente espancados.
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5. O QUE SE TEM PARA ARREMATAR
Dois olhares poéticos, pois, mais do que antagônicos: o de Lima a revelar uma negra bela, oprimida, sedutora, subserviente e esperta, porém talvez resignada ao aviltante papel de objeto sexual e assim a tolerar ser tratada sem nenhum apreço à sua dignidade humana; o de Silveira a espelhar uma negra igualmente exuberante, contudo briosa, firme e impetuosa, senhora do seu corpo, das suas vontades e das suas escolhas, logo cônscia dos seus valores como ser humano.
Mas não é difícil de adivinhar que ambos de alguma forma contagiados por projeções simbólicas comprometidas: Jorge de Lima, pois que a dizer segundo o sentimento do universo branco, logo reveladamente eivado, ainda que não o quisesse o poeta, de herdado preconceito que ainda hoje persiste, daí provindo a generalização caricatural que pode alguém ver sugerida em seu poema; Oliveira Silveira, por sua vez, visto que empurrado por aceso orgulho de pertencimento à gente negra, além do que tocado por justificado ressentimento, disso advindo a intencionalmente contraposta sobrestimação da mucama e a desdenhosa e estigmatizante representação da mulher e do homem brancos.
No final das contas, a evidência do quão ficta permanece a propalada democracia racial brasileira, sendo palpável a discriminação ainda sofrida pelos afro-descendentes, se bem que a cada vez mais tímida e convenientemente velada, ao tempo em que quase sempre socorrida por cínica hipocrisia.
Cenário de aparências, por sinal, que já em 1952 era delatado por Jorge de Lima, no ventre do seu poema Castro Alves – Vidinha (LIMA, 1997:803), composto ao modo das cantorias dos trovadores do nordeste do Brasil, onde instiga:
[...] ó caboclo do sertão,
o cativeiro de hoje
é o mesmo: cana e algodão.
O mesmo Jorge de Lima que, convicto da edificação compartilhada da identidade brasileira, pergunta ao Brasil em “Fui mudando, mudando” (JORGE, 1997: 251):
Da era cristã de 1500
até estes tempos severos de hoje,
quem foi que formou seu novo ventre,
teus olhos, tua alma?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?
E não se dá diferentemente com Oliveira Silveira, quando, em seu poema “Ser ou não ser” (SILVEIRA, 2008:108), indignado com a discriminação persistente, apesar da incontroversa contribuição negra para a formação da cultura brasileira, desafiadoramente indaga:
O racismo que existe,
o racismo que não existe.
O sim que é não,
o não que é sim.
É assim o Brasil
ou não?
* Palestra proferida na Maison de Recherches da Universidade de Toulouse
II - Le Mirail, no dia 8 de fevereiro de 2013, durante a Journée
d’Etudes “Les Ameriques Noires: Identités et Représentations”, promovida
pelo Institut de Recherches et d’Etudes Culturelles (IRIEC), com a
colaboração do Institut Pluridisciplinaire pour les Etudes sur les
Amériques à Toulouse (IPEAT)A representação poética do negro em terras brasileiras, a contar da infância da Colônia e até meados do Século XX, quase que só era visível pela voz do homem branco, ressalvadas as presenças pontuais, embora negligenciadas e quase ignoradas por seus contemporâneos, de poetas afro-descendentes da estatura de Caldas Barbosa (1739/1800), Maria Firmina dos Reis (1825/1917), Luiz Gama (1830/1883) e Cruz e Souza (1861/1898), entre outros tantos.
E a cada momento uma inclinação determinada.
De princípio (isso ao correr do Século XVII) foram ouvidos os versos depreciativos e mesmo ultrajantes (“ muitos mulatos desavergonhados/trazidos pelos pés os homens nobres”) de Gregório de Matos (1636 – 1696. Depois, já ao correr da centúria seguinte, aqueles epicizantes de Santa Rita Durão (1722 – 1784) e de Basílio da Gama (1740 – 1795), porém a só cuidarem dos negros enquanto combatentes ao lado dos brancos e a defenderem os interesses do Trono Lusitano: Durão, em Caramuru, a louvar Henrique Dias, herói da Guerra Holandesa em Pernambuco; Gama, em Quitúbia, a celebrar Domingos Ferreira da Assunção, notabilizado durante a Guerra Preta.
Mais tarde, já no século XIX, chegou a vez de Gonçalves de Magalhães (1811 – 1882) e de Castro Alves (1847 – 1871), ambos apiedados dos negros, ao sopro do romantismo, diante das feridas neles abertas pelos ferrões da extradição, do exílio e da opressão: Magalhães enternecido, afetuoso e contido; Castro Alves, o condoreiro, arrebatado, combativo e grandiloquente.
Com Jorge de Lima (1893-1953), então, uma singular mudança de rumos, ainda que se queira admitir que se mostrava ele vulnerável ao bafio da casa-grande, logo à perspectiva espezinhadora do colonizador, ao menos em parte da sua obra.
É o caso, a propósito, do seu poema “Essa Negra Fulô” (LIMA, 1997:255), pela primeira vez publicado pela editora Casa Trigueiros, em Maceió, no ano de 1928, quando, depois de andejar pelo parnasianismo adotou ele o modernismo, meio do caminho até mais tarde aderir ao surrealismo, aliás com ressonâncias proustianas.
Pois é justo contra a representação ali trazida da mulher negra, até por entendê-la enxergada por Lima com olhos cristãos e em tudo e por tudo alheios à negritude, que Oliveira Silveira (1941-2009), também vate brasileiro, porém afro-descendente, contemporâneo e cognominado Poeta da Consciência Negra, compôs, em um exercício de explícita intertextualidade, o poema “A Outra Nega Fulô” (SILVEIRA, 2008:110).
Estariam ambos a cuidar da mesma mucama imaginária?
Até que ponto, por conseguinte, na verdade se distanciam ou verdadeiramente se conflitam os seus olhares poéticos, no que diz com a representação da mulher negra?
Seria suspeitosa a representação tecida por Lima, pois que a falar como branco, logo como integrante de estamento social de elite, ou ambas, já que a visão identitária de Silveira poderia estar infectada por seu comprometimento étnico?
É o que ora se pretende decifrar.
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2. O AFRO-BRASILEIRO NA LÍRICA DE JORGE DE LIMA
Jorge Mateus de Lima, pelo que dele dizem os seus biógrafos, era neto de um Senhor de Engenho, tendo eclodido a sua vocação poética ainda miúdo, quando, um certo dia, fora levado a visitar a Serra da Barriga, cenário em que surgiu, ensaiou progredir e foi finalmente esmagado o Quilombo dos Palmares.
Demais disso, embora nascido após a abolição da escravatura (já que esta acontecera em maio de 1888), Jorge conheceu a infância sob os zelos e os mimos de Celidônia, de quem diria, em “Ancila Negra” (LIMA, 1997:305), “linda moleca ioruba”. Ela que, entre tantos outros negros e negras legalmente libertados, não se sentiam encorajados para ganhar a estrada e procurar nova vida, eis que a não divisarem meios e perspectivas que lhes assegurassem as próprias sobrevivências. E era bem por isso que se resignavam a permanecer dependentes dos seus antigos senhores e portanto a servi-los, por vezes em vexatória condição de atípico porém quase igualmente degradante cativeiro.
Era então Celidônia quem o banhava, quem o vestia, quem o cobria de dengos, quem o fazia dormir com histórias de bichos e de reinos remotos, quem o pajeava nas suas idas e vindas entre a casa e a escola, quem o acariciava, quem o consolava, quem o beijava com seus lábios roxos, quem talvez o iniciava em prematuras vadiações sexuais. E em se dando que ela um dia se afogou no Rio Mundaú, sem ter avisado ao poeta que escolhera morrer, confessa ele, ainda em “Ancila Negra”, que o teria deixado:
[...] parado em pequeno,
mandigando e dormindo,
muito dormindo mesmo.
Mas o fato é que a imagem dela ficou a tal ponto grudada na sua memória que, segundo depoimento de José Fernando Carneiro, inundava-lhe as costumeiras e caladas noites de insônia, estando o seu nome, mais tarde, constantemente em sua boca, quando já estava ele cumprir os seus derradeiros dias de vida. (apud ILARI, 1991:8).
Não seria de surpreender, por conseguinte, que seu universo lírico (já homem feito) estivesse contagiado pelas tardias, é certo, contudo por ele de feito vivenciadas reminiscências da casa-grande e da senzala.
Por isso mesmo, segundo algumas leituras do seu poema “Essa Negra Fulô” (e aqui o termo Fulô revela corruptela prosódica do vocábulo Flor), teria pesado sobre Lima, enquanto a compô-lo, a nódoa de se denunciar impregnado, ainda que não deliberadamente, pela ótica preconceituosa que ressoava desde as sombras da escravidão. Visão, enfim, como que saudosista dos abusos do relho, do tronco, da máscara de folhas de flandres e da cativa objeto sexual, o que remetia a uma consciência do negro como elemento exótico, inferior e até mesmo pitoresco.
Mas em meio a tudo isso (há ainda quem ressalte) uma vigorosa fixação derramada sobre o corpo sensual e as promessas eróticas das mulheres negras. Talvez, convenha-se, brotada de sua suspeitosa convivência com Celidônia, “anjo negro degradado para sempre”, cuja ausência apagou “os signos do regresso”, enquanto que “tudo ficou como um sino ressoando”, segundo também suspira em “Ancila Negra”.
Certamente, porém, herdada dos dias das suas escapadas, ainda na meninice, no rumo das margens do mesmo Rio Mundaú em que ela se afogara, onde se punha Lima a furtivamente se deliciar na contemplação do corpo ebâneo de “Zefa Lavadeira” (LIMA, 1997:301).
Aquela “Zefa Lavadeira” que, enquanto lavava cada peça da trouxa de roupa, arrojando os panos contra a pedra de bater, nem se dava conta de que lá estava ele, estático, sem dar um pio sequer, com os olhos presos nas suas axilas que se cobriam e se descobriam, “piscando a tentação de arrochos e rendições cheias de saciedade” (op.cit.1997).
Logo depois, então, o deslumbramento, quando “Zefa Lavadeira”, em se acreditando só, “ia despindo as belezas selvagens de ninfa cafuza” e assim expondo o seu corpo “só vestido do manto de pele negra com que nascera”(idem,ibidem).
Mas também, pelo que se vê no mesmo poema, havia um mundo de “outras negras”, com seus “seios pontudos” e suas “nádegas rijas”, as mãos côncavas na espera da espuma de sabão que se despenhava entre os peitos e escorria pelo ventre até as coxas, de onde era suavemente transportada aos segredos dos “sexos em que a África parece dormir o sono temeroso de Cam”.
Mais tarde, reconheça-se, Jorge de Lima se reinventaria, reinventando a representação do afro-brasileiro, até empurrado por uma mentalidade inovadora inaugurada pelos seguidores da escola modernista e escritores canônicos, esta a ter na mira o testemunho da contribuição da negritude para a edificação da identidade brasileira, o que se expõe indispensável para que se promova a internalização, pelo negro, da noção de pertencimento cultural.Perspectiva, aliás, que já vinha contagiando a música de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e as criações pictóricas de Di Cavalcanti (1897-1976) e de Tarsila do Amaral (1886-1973).
E foi então, com as composições reunidas na coletânea Poemas Negros, que só viria a ser publicada em 1947, que definitivamente surgiu o Lima contritamente comprometido com o negro e com as suas tradições, crenças e superstições, costumes e meizinhas, falares e mandingas, temperos e iguarias, com os seus fetiches e os seus desencantos, no que procuraria, agora sim, verdadeiramente resgatar a então banalizada cultura negra.
Mas isso é coisa que veio depois da Negra Fulô, pelo que não vale a pena agora considerar.
(((((( ))))))
3. A LIMIANA NÊGA FULÔ
A Negra Fulô do poema de Jorge de Lima, ao ficticiamente chegar ao banguê de um seu avô, é só por só por ele enxergada qual insignificante “negra bonitinha”, como se não mais fosse que um objeto de adorno ou de utilidade doméstica (logo coisificada e portanto despersonalizada), que era trazido para decorar o cenário da casa-grande e para satisfazer a cada um dos caprichos do Sinhô, da Sinhá, dos Sinhozinhos e das Sinhazinhas.
Por isso mesmo, já a seguir a notícia da sua serventia e da sua servitude, quando forra a cama da Sinhá, quando lhe penteia os cabelos, quando a ajuda a trocar de roupa, quando abana o seu corpo sempre que ela sente calor, quando lhe coça as coceiras, quando lhe cata cafunés, quando lhe balança a rede e até lhe conta histórias da carochinha (ou não) a cada vez que bate nela aquela vontade danada de pegar no sono.
Isso para não falar do engomar e do alisar com ferro quente as roupas do Sinhô, bem como, a cada boca da noite, do tanger as crianças para a cama e fazê-las dormir, deveres suplementares que também eram sacudidos nos costados de Fulô.
É quando se dá conta a Sinhá de que sumiu um seu frasco de cheiro, um daqueles que lhe foram presenteados pelo Sinhô, pelo que de pronto intuiu ela que fora Fulô quem o roubara, apressando-se em ordenar que o feitor a chicoteasse. E o Sinhô, sensível ao angustiante sentimento de perda da Sinhá e talvez sinceramente indignado, foi ele mesmo presenciar a encenação do castigo. Só que ficou de boca aberta, estatelado, quando assistiu surpreso à inteira e fascinante nudez da mucama.
Um outro dia, logo não muito mais tarde, já deu a Sinhá pelo desaparecimento de um lenço de rendas, de um cinto, de um broche e de um terço de ouro da Virgem Maria, também agrados igualmente vindos do carinho, da generosidade ou das engabelações do Sinhô.
Novamente, então, a culpa presumida e a sumária condenação de Fulô ao espancamento. Agora, porém, decidiu-se o próprio Sinhô a aplicar, ele pessoalmente, o degradante corretivo na cativa, por certo já antevendo, cobiçosamente, o quando o resto do mundo seria encoberto por suas curvas voluptuosas.
Foi quando aconteceu o que seria de se esperar...
Ao ver Fulô, outra vez, desvestir-se do cabeção e da saia, encolhendo-se nua como veio ao mundo, o Sinhô sentiu o fogo que lhe esbraseou as entranhas, perdeu o juízo, azuniu a chibata, agarrou a mucama e, quanto ao resto, nem é preciso que agora se diga. Só haveria de dar, como deu, no choroso lamento de uma Sinhá ferida e enciumada:
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
E logo:
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?
Um poema, pois, segundo a apreciação de alguns, em que Jorge de Lima se valera de um olhar lírico sentado em estereótipos pejorativos enraizados na etnia e na sexualidade, pois que a enxergar a negra como gatuna, lúbrica, maliciosa, matreira e subserviente, isto é, segundo a receita do homem branco, assim como ditada pelos ecos da escravidão.
Não bastasse, no que até fugiria à contextualidade, a fazer parecer que fora ela a manhosamente seduzir o Sinhô (ao ponto de roubá-lo da Sinhá) e não de que fora o Sinhô, de relho na mão, a lhe impor a submissão aos seus impulsos libidinosos.
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4. A SILVEIRIANA OUTRA NEGA FULÔ
Tomando-se, agora, o poema “A Outra Nêga Fulô”, obra do afro-descendente Oliveira Silveira, mais do que diversa é a representação que se surpreende da mulher negra, estando mesmo a conter, no particular, indissimulável contra-discurso.
O que é evidenciado, aliás, quando já inegavelmente se debruça Silveira sobre a mesma Negra Fulô, fruto da criação lírica de Jorge de Lima, embora prefira nomeá-la Nêga Fulô, no que, sincopando o primeiro termo, propositalmente abraça a pronúncia popular e corrompida da palavra Negra.
E é isso tanto verdadeiro que, se de começo a aponta como a outra Nega Fulô, mais do que ligeiro se arrepende para admitir seja a mesma:
O sinhô foi açoitar
a outra nêga Fulô
- ou será que era a mesma?
Aliás, até assume Silveira postura desafiadora e provocativa quando, no corpo da composição e através da voz que empresta ao Pai João, não só assevera que vem aquela releitura “prá escândalo do bom Jorge”, como a este alfineta ao qualificá-lo como “seminegro e cristão”.
O que vem a dizer que o denuncia desautorizado a falar sobre a negritude e muito menos em nome dela, pois que além de a ela não pertencer (seja pela pele, seja pela idoneidade do sangue, seja pelas tradições), ainda por cima é cristão, logo do mesmo universo daqueles que, por séculos a fio, vilmente apresaram, maltrataram, escravizaram e oprimiram a gente africana, chegando ao desvario de lhe negar a humanidade.
Tenha ou não tenha razão Silveira quanto a este ponto, ou esteja a ser empurrado por arroubo xenófilo, compreensivelmente plantado em sua ancestralidade, a verdade é que ostensivamente opósito é o perfil que traça da mesma mucama, eis que ao reescrevê-la, por sobre a criação de Lima, finda por mitificá-la.
Para Silveira foi sim o Sinhô açoitar a mucama, instigado, é certo, pelo temerário veredito da Sinhá, embora cale o poeta sobre as más intenções que já poderiam estar a provocá-lo, visto que era comum ser desnudada a cativa a ser surrada.
Também não nega o poeta que, como era de se esperar:
A negra tirou a saia
a blusa e se pelou.
E nem mesmo que:
O Sinhô ficou tarado
Largou o relho e se engraçou.
Só que é ela bem diferente da limiana Negra Fulô, pois que altiva e não servil, voluntariosa e não subserviente, senhora do seu corpo e não objeto benevolamente entregue aos apetites libidinosos do Sinhô, decidida em suas escolhas e não sufocada por acovardada indulgência.
E sendo mulher, enfim, mulher negra consciente da sua humanidade, bravamente repeliu o estuprador, aproveitou-se de um pedaço de pau que estava por perto e o espancou até quando ele finalmente se extinguiu.
E mais tarde a angústia da Sinhá:
- Fulô! Fulô! Ó Fulô!
A Sinhá burra e besta perguntava
onde é que tava o sinhô
que o diabo lhe mandou.
- Ah, foi você que matou!
A Sinhá, pois, aqui desprovida de discernimento e comparada a burras e bestas, no que animalizada tal qual os brancos animalizavam os negros, enquanto que o Sinhô, seu marido, já não é dádiva de Deus, mas sim obra das artes do diabo em pessoa, pois que só assim, aos olhos do poeta, para que lhe fossem justificadas a arrogância, a depravação e a crueldade.
Foi quando Fulô, que já havia tomado rumo incerto e não sabido, escutou à distância a irada e ao mesmo tempo lacrimosa e condenatória interpelação da Sinhá. E de pronto acintosamente confirmou:
- É sim, fui eu que matou –
disse bem longe Fulô [...]
E tendo assim confirmado o crime ao negro retinto que com ela escapava, foi com ele se acasalar no meio da mata.
Só não há notícia de que se tenham encantado de vez no meio do mundo, sem que nunca mais fossem encontrados. Sim, pois que também possível que Fulô e o negro escolhido e que lhe assanhava os desejos, mais cedo ou mais tarde, tenham sido apresados por algum Capitão do Mato, amarrados na ponta de alguma corda, como se fossem bichos, arrastados de volta ao banguê e ali (quem sabe?) muito mais do que só brutalmente espancados.
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5. O QUE SE TEM PARA ARREMATAR
Dois olhares poéticos, pois, mais do que antagônicos: o de Lima a revelar uma negra bela, oprimida, sedutora, subserviente e esperta, porém talvez resignada ao aviltante papel de objeto sexual e assim a tolerar ser tratada sem nenhum apreço à sua dignidade humana; o de Silveira a espelhar uma negra igualmente exuberante, contudo briosa, firme e impetuosa, senhora do seu corpo, das suas vontades e das suas escolhas, logo cônscia dos seus valores como ser humano.
Mas não é difícil de adivinhar que ambos de alguma forma contagiados por projeções simbólicas comprometidas: Jorge de Lima, pois que a dizer segundo o sentimento do universo branco, logo reveladamente eivado, ainda que não o quisesse o poeta, de herdado preconceito que ainda hoje persiste, daí provindo a generalização caricatural que pode alguém ver sugerida em seu poema; Oliveira Silveira, por sua vez, visto que empurrado por aceso orgulho de pertencimento à gente negra, além do que tocado por justificado ressentimento, disso advindo a intencionalmente contraposta sobrestimação da mucama e a desdenhosa e estigmatizante representação da mulher e do homem brancos.
No final das contas, a evidência do quão ficta permanece a propalada democracia racial brasileira, sendo palpável a discriminação ainda sofrida pelos afro-descendentes, se bem que a cada vez mais tímida e convenientemente velada, ao tempo em que quase sempre socorrida por cínica hipocrisia.
Cenário de aparências, por sinal, que já em 1952 era delatado por Jorge de Lima, no ventre do seu poema Castro Alves – Vidinha (LIMA, 1997:803), composto ao modo das cantorias dos trovadores do nordeste do Brasil, onde instiga:
[...] ó caboclo do sertão,
o cativeiro de hoje
é o mesmo: cana e algodão.
O mesmo Jorge de Lima que, convicto da edificação compartilhada da identidade brasileira, pergunta ao Brasil em “Fui mudando, mudando” (JORGE, 1997: 251):
Da era cristã de 1500
até estes tempos severos de hoje,
quem foi que formou seu novo ventre,
teus olhos, tua alma?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi cristão?
E não se dá diferentemente com Oliveira Silveira, quando, em seu poema “Ser ou não ser” (SILVEIRA, 2008:108), indignado com a discriminação persistente, apesar da incontroversa contribuição negra para a formação da cultura brasileira, desafiadoramente indaga:
O racismo que existe,
o racismo que não existe.
O sim que é não,
o não que é sim.
É assim o Brasil
ou não?
Fonte: Gazeta de Alagoas
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