Após quase um século de sucessivos fracassos, em 20 de dezembro de
1695, uma tropa mercenária, contratada pela Coroa portuguesa e os
usineiros de açúcar da então capitania de Pernambuco no Nordeste
brasileiro, trucidavam o último foco da resistência armada dos escravos
que passaria à história como o Quilombo dos Palmares. Seu líder,
conhecido pelo nome de guerreiro africano, Zumbi, era morto em um
combate heróico e desigual.
Sua cabeça seria decepada do corpo, enfiada
em uma estaca e exibida em na praça principal de Olinda até descarnar-se
totalmente, para mostrar que o grande líder negro não era imortal e
para meter medo nos escravos e prevenir futuras rebeliões.
A repressão contra o Quilombo de Palmares não se esgotou com a morte
de Zumbi. A historiografia oficial procurou retirar legitimidade
histórica à resistência negra, com o argumento de que, caso saíssem
vitoriosos, os quilombolas teriam transformado o Brasil em um outro
Haiti, ou seja, liquidado a cultura européia, lusitana, substituindo-a
pela barbárie africana e condenando o país a um atraso sem perspectivas
de redenção, concepção esta que ignora o atraso nacional existente,
causado justamente pela predominância e longa sobrevivência da
escravidão contra a qual lutavam os quilombolas de Zumbi: “A todos os
respeitos, menos indiscutível é o serviço relevante prestado pelas armas
portuguesas e coloniais, destruindo de uma vez a maior das ameaças à
civilização do futuro povo brasileiro, nesse novo Haiti, refratário a
todo o progresso e inacessível a toda civilização, que Palmares
vitorioso teria plantado no coração do Brasil” (Os Africanos no Brasil, Nina Rodrigues).
Na década de 40, iniciam-se no Brasil o estudos negros voltados para
recuperar a verdade histórica sobre a escravidão, a situação do negro e
suas lutas. Um dos pioneiros deste gênero proscrito de historiografia,
Édison Carneiro, escreve o clássico O Quilombo dos Palmares onde,
pela primeira vez, a história da epopéia dos escravos é relatada sobre a
base de uma documentação rigorosa e um método científico. Escrito em
pleno Estado Novo – que foi, entre outras coisas, um regime de
segregação racial – o livro é proibido e tem que ser publicado pela
primeira vez no estrangeiro.
Na década de 70, a luta dos escravos será resgatada pelas tendências
nacionalistas e foquistas, sendo Zumbi transformado em símbolo da
resistência nacional ao imperialismo, da mesma forma que em outros
países latino-americanos o foram os líderes das grandes rebeliões
indígenas como Tupac Amaru e Tupac Catari.
Os historiadores deste
período (Décio Freitas, Palmares, a guerra dos escravos, originalmente, Palmares, a guerrilha dos escravos; Clóvis Moura, Quilombos e rebelião negra)
buscam apresentar a guerra dos escravos como um antecedente da luta
guerrilheira dos anos 60 e 70. O nacionalismo, ao contrário do marxismo,
procura, como movimento político apoiar-se no mito. Assim como a luta
de José Marti foi o mito dos guerrilheiros de Fidel Castro, Tupac Amaru,
o de vários movimentos sul americanos, Zumbi foi um dos heróis
semi-mitológicos das tendências foquistas (VAR Palmares!) no Brasil.
Este fato não diminui, de forma alguma, o serviço prestado de resgatar a
experiência histórica que a classe dominante procurou, sempre, enterrar
no esqueimento.
A crise da ditadura militar, onde novamente intensificou-se a
opressão do negro, com manifestações de aberta segregação racial, levou
ao surgimento de um novo movimento negro como parte da luta
antiditatorial do movimento estudantil e operário. Esta nova vaga da
mobilização política do negro brasileiro terá maior envergadura que a do
período 45-64, expressa nos Congressos negros da década de 40
inspirados pelo próprio Édison Carneiro e outros, cuja atividade
política se colocava claramente nos marcos do nacionalismo burguês
varguista.
O movimento do final dos anos 70 levará à constituição do
Movimento Negro Unificado, um primeiro esforço de dar um caráter
unificado e nacional às tendências políticas do movimento negro e, pela
primeira, vez de claras características nacionalistas, ou seja, de
afirmação do negro como parte oprimida da sociedade e de condenação das
tentativas de “integração racial” que, em absolutamente nada,
modificaram a sorte da segundo maior população negra do planeta, maior
que todos os países africanos, com a exceção da Nigéria.
O impasse do incipiente nacionalismo negro brasileiro – que nunca
conseguiu definir um programa ou criar uma verdadeira organização
política, apesar do seu começo vigoroso na luta contra a ditadura – não
impediu o crescimento de uma consciência embrionária e de uma
mobilização negra, impulsionada pela situação geral subalterna do negro
no interior da sociedade brasileira, formando a camada mais miserável da
população, que abrange a maioria dos desempregados, dos sem-teto,
ganhando salários mais baixos que os brancos, continuando a ser vítima
preferencial da arbitrariedade judiciária e da violência policial e
tendo bloqueada todas as possibilidades de ascensão social, a começar
pela própria universidade, onde os negros que perfazem cerca de 60% da
população do país constituem menos de 5% do total de matrículas.
A grande repercussão dos 300 anos do martírio de Zumbi, que a própria
imprensa burguesa reconheceu, para evitar cair no ridículo, ser um
“herói ignorado pela história”, inclusive com a inédita benção oficial é
expressão do crescimento das contradições sociais e da revolta do negro
(Fernando Henrique Cardoso, ladeado pelo ex-rei do futebol e ministro
dos Esportes, Pelé, e a senadora petista Benedita da Silva, compareceram
ao município de União dos Palmares, no Estado de Alagoas, na Serra da
Barriga, próximo ao legendário mocambo do Macaco, centro da resistência
Palmarina, para prestar a homenagem cínica do representante maior dos
opressores da nação ao herói dos oprimidos).
As manifestações políticas e da cultura negra – que se recusa a ser
enterrada segundo os desejos da classe dominante que se julga mais
próxima da Europa do que da África ou das Antilhas – mostram que o
passado está alcançando o presente e a questão negra, assim como na
África do Sul e nos EUA, desloca-se rumo ao centro da crise política,
como resultado da gigantesca crise capitalista que acentuou as
tendências a empurrar os setores mais oprimidos e explorados da
população para o último degrau da miséria e da violência.
Mais que a recuperação da memória, a questão do negro no Brasil,
impelida pela realidade, está reivindicando um programa, uma perspectiva
e uma organização política. A discussão sobre Zumbi deve ser
aprofundada para ser um elemento no sentido desta reivindicação, não
mitológico, mas como instrumento da compreensão social e histórica da
questão do negro no Brasil.
A escravidão africana no Brasil
A escravidão africana no Brasil foi uma parte fundamental de um dos
maiores empreendimentos mercantis dos primórdios do capitalismo, a
indústria do açúcar, somente suplantada no comércio europeu da época
pela extração de metais preciosos na América hispânica e,
posteriormente, no próprio Brasil.
O atraso brasileiro foi uma consequência direta da excelência das
condições naturais na faixa litorânea do Nordeste que permitiam a
monocultura de produtos tropicais, de grande valor comercial na Europa
dos séculos XV e XVI. Os objetivos comerciais da colonização
determinaram o monopólio da terra, de alto valor como investimento e a
reunião de mão-de-obra escrava necessária às grandes plantações de cana e
aos engenhos de açúcar através da maior empresa de pirataria de que tem
notícia a humanidade. Da mesma forma que as terras relativamente
inférteis da Nova Inglaterra terminaram por dar lugar à pequena
propriedade agrícola e a uma acumulação de capital nativo, as terras
tropicais do Nordeste brasileiro, de extraordinária capacidade
produtiva, deram lugar ao latifúndio escravagista que bloqueou o caminho
para um desenvolvimento capitalista autóctone.
A mão-de-obra africana foi trazida ao país por meio de uma violência
sem paralelo na história da humanidade, nos célebres navios negreiros,
onde se amontoavam seres humanos em um porão infecto, em viagens de dois
e três meses que transformavam uma parcela da carga em cadáveres e
mutilava definitivamente uma outra, de tal forma que a contabilidade dos
traficantes de escravos sempre previa uma perda alta como resultado da
viagem, compensada apenas pelo alto valor unitário da mercadoria humana.
No tempos do embargo ao tráfico tornou-se comum os navios negreiros
arrojarem sua carga de miséria humana ao mar para evitar a repressão da
humanitária marinha britânica que, na defesa dos interesses capitalistas
daquele país, cuja burguesia havia transformado .o seu interesse
econômico e social em uma ideológica de elevação moral da humanidade.
Nas fazendas de açúcar, a sorte do escravo africano não melhorava em
nada. Os feitores faziam os escravos trabalharem até o limite das suas
forças e, para disciplinar as tentativas de rebeldia, faziam uso das
mais violentas formas de tortura, desde as chibatadas até as mais
hediondas técnicas de mutilação como arrancar dentes, língua, olhos,
dedos, orelhas e os seios no caso das mulheres. O estupro das negras
tornou-se uma verdadeira instituição, praticada inclusive pelos piedosos
frades da Igreja Católica, o que deu origem ao abominável comércio que
os pais faziam dos próprios filhos, como ocorreu com o notável líder
abolicionista e poeta, Luiz Gama, filho de um comerciante português com
uma escrava e que foi vendido como escravo pelo próprio pai.
Esse martírio inacreditável chegou ao extremo de dar lugar a uma
forma de resistência passiva, conhecida como banzo, onde os negros
morriam de uma inanição espiritual que era, na realidade, uma forma de
suicídio por falta de vontade de viver. Esse quadro dantesco de horrores
inacreditáveis não impediu que boa parcela da intelectualidade
burguesa, inclusive do modernismo do século XX, difundissem a
extraordinariamente fantasiosa versão de que a escravidão no Brasil
teria sido uma dominação “branda e humanitária” (Gilberto Freyre) e
exaltassem o caráter naturalmente “cordial” (Sérgio Buarque de Hollanda)
do homem e da cultura brasileira, tudo o que teria desaguado em uma
sociedade que seria um modelo de “democracia racial”!
Calcula-se que cerca de 50 milhões de almas tenham sido trazidas ao
Brasil durante os mais de 300 anos de escravidão partidas principalmente
das possessões portuguesas de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné
Bissau.
A selvageria inaudita do regime escravista – que não dava ao escravo
nenhuma alternativa – despertou uma dura e permanente resistência dos
negros que se traduziu em milhares de revoltas de todas as modalidade e
tamanhos e por todo o país, algumas das quais como as revoltas dos
negros islâmicos, os malês e hussás na Bahia, no início do século XIX,
ou ainda os levantes escravos realizados como parte da campanha
abolicionista, como a grande marcha em São Paulo e as rebeliões, com
incêndios em grande escala nas fazendas em Campos no Rio de Janeiro no
final do mesmo século, constituíram verdadeiras insurreições de escravos
contra o regime escravagista.
As rebeliões escravas, no entanto, assumiram, mais comumente, durante
toda a história do Brasil, a forma dos quilombos, os quais durante
todos os três séculos de escravidão brotaram por todos os estados do
país como cogumelos após a chuva, não se excetuando os estados mais
distantes e menos povoados como os do Norte do país, na região
amazônica. Nos estados originais da colonização açucareira portuguesa
como a Bahia e Pernambuco, os escravos rebelados criaram centenas de
quilombos, o mesmo ocorrendo em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e
até Santa Catarina no Sul do país, alguns dos quais sobreviveram até os
dias de hoje como comunidades que, às centenas, reivindicam a posse das
terras dos antigos quilombos que lhe deram origem.
Os quilombos têm sido retratados, de maneira completamente
equivocada, por muitos historiadores como sendo uma forma subalterna de
resistência à escravidão, na medida em que não tinham uma concepção de
conjunto, um “projeto político” etc. mas se “limitavam” a agrupar os
escravos fugidos das fazendas. Na realidade, o quilombo, ou seja, a fuga
e a criação de um foco de resistência em forma de comunidade produtiva é
a forma mais tradicional de revolta de escravos na história da
humanidade. No princípio das guerras servis em Roma, encontrava-se o
mesmo método inevitável: a fuga de escravos, muitas vezes com a
liquidação dos donos, dava lugar a comunidades fortificadas as quais
inevitavelmente, na medida em que cresciam eram obrigadas, para
sobreviver, a engajar um combate de vida ou morte contra o regime
escravagista.
A atribuição de um caráter inócuo aos quilombos como instrumento de
destruição do regime escravagista parte de uma ilusão de ótica. A
maioria dos quilombos foram focos relativamente isolados de resistência
porque a revolta do escravos não havia podido se aproveitar de uma crise
interna do regime, ou, para utilizar, uma expressão conhecida, a crise
“por baixo” não havia se combinado com uma crise “por cima”, ou ainda,
embora os “de baixo” não pudessem mais ser governados como antes, os “de
cima” continuavam conseguido manter a sua dominação como antes.
Justamente a importância histórica do quilombo dos Palmares é que
mostra que, diante da crise do regime colonial, a revolta escrava
apresentava um alto potencial subversivo em relação ao regime
escravagista em seu conjunto.
A crise das metrópoles e da colônia
Portugal constituiu-se como reino independente de Castela apenas em
1385, onde um levante nacional inaugurou, com D. João I, a dinastia de
Aviz. Com a vitória das forças portuguesas na batalha de Aljubarrota,
consolidou-se o novo reino que conhecerá sua fase de maior prosperidade a
partir de 1415 quando, com a conquista de Ceuta, inicia-se o
expansionismo português que, após a conquista da passagem do Cabo das
Tormentas (África do Sul) por Bartolomeu Dias, alcançará o apogeu no
reino de D. Manuel I (1495-1521), conhecido como “o venturoso”, durante
cujo reinado realiza-se o ciclo principal das navegações portuguesas com
a famosa viagem de Vasco Gama estabelecendo o caminho marítimo para o
oriente.
A descoberta e o início da colonização do Brasil vieram a
culminar esta obra. A Revolução de Aviz dá lugar a um fenômeno original
no desenvolvimento ocorrido no crepúsculo do feudalismo europeu, que é a
constituição, em um país minúsculo e assedidado de todos os lados por
poderosos impérios, de uma monarquia absoluta apoiada na fraqueza dos
barões feudais portugueses e na nascente e agressiva burguesia comercial
portuguesa.
As navegações e explorações coloniais lusitanas são a
expressão deste desenvolvimento que será abortado pela derrota de D.
Sebastião. O nacionalismo português, cujo caráter está profundamente
imbricado com a religião católica, e cuja admirabilíssima expressão
cultural maior é o Lusíadas de Luís de Camões, maior épico da
época moderna, é a ideologia desta burguesia mercantil que se apodera de
uma porção cada vez maior do Estado em serviço dos seus interesses
expansonistas.
Ao final do século XVI, a dinastia de Aviz inicia o seu nadir,
extinguindo-se com a morte do rei D. Sebastião I (1557-78), morto com
boa parte do seu exército nas cruzadas na batalha de Alcácer-Quibir
contra os mouros.
A partir daí, enfraquecida, a nobreza mercantil de Portugal
submete-se à coroa espanhola, então a maior potência europeia, em busca
de estabilidade política e econômica e assim permanecerá de 1580, com
Felipe I (Felipe II da Espanha) até 1640, quando o levante da
aristocracia portuguesa contra Felipe III (Felipe IV da Espanha) separa
os dois reinos, estabelecendo no trono português a dinastia bragantina
com D. João IV (1640-56). Esta crise coloca-se no início da decadência
do poderoso império da Casa dos Habsburgos, cujo coração é a Espanha.
Em 1624, os holandeses, através da chamada Companhia das Índias
ocidentais invadem a Bahia, centro da colônia, e são expulsos por uma
força conjunta hispano-lusitana. Em uma segunda tentativa, seis anos
depois, conseguem se apoderar da capitânia de Pernambuco, segundo centro
produtor das possessões portuguesas, aí permanecendo até 1654.
É neste marco, do que foi provavelmente a maior crise da colônia
portuguesa, com os holandeses se apoderando concomitantemente das terras
africanas de Portugal que se dá o crescimento do Quilombo de Palmares.
A guerra leva a extremos a debilidade do regime escravagista, a tal
ponto que os portugueses oferecem aos negros a alforria em troca de
participarem da guerra contra a potência dos países baixos e é formado o
“terço” (formação militar tradicional do exército espanhol da época) do
comandante negro Henrique Dias que, graças aos serviços prestados, não
apenas contra os holandeses, mas também contra o próprio Palmares,
alça-se à condição de fidalgo negro em uma terra de escravos.
As formações quilombolas da região dos Palmares datavam já do final
do século XVI. Ali reuniam-se os escravos fugitivos das fazendas da
região, índios e inclusive homens brancos que, por um motivo ou outro,
sofressem a opressão ou a perseguição do regime colonial. Durante a
guerra contra a ocupação holandesa, as comunidades embrionárias
receberam o reforço de um incremento das fugas e de várias rebeliões
que, não raro, terminavam com a morte dos donos e feitores dos engenhos e
a fuga em massa dos escravos.
A partir daí, o Quilombo dos Palmares já não era uma comunidade
única, mas um conjunto de quilombos chamados de mocambos, os quais podem
ter atingido uma população de cerca de 30 mil pessoas, um número
extraordinário para a época. Segundo Décio Freitas (op. cit.)
“conhecemos o nome e a localização de onze povoações palmarinas. Macaco,
sobre a serra da Barriga, num ponto a sudoeste da atual cidade alagoana
de União dos Palmares, era a maior e mais importante. Possuía 1.500
casas e uma população de cerca de oito mil habitantes. Estrategicamente
era quase inexpugnável e por isso veio a converter-se na capital da
república negra. Seguia-se Amaro, 54 quilômetros a noroeste de
Serinhaém, com uma extensão de seis quilômetros, mil casas e uma
população avaliada em cinco mil habitantes.
Nas cabeceiras do rio Satuba
e imediações da serra da Juçara, numa distância de 36 quilômetros do
Macaco, erguia-se Subupira. Media 6 quilômetros de extensão e situava-se
na distância de três montes. Entre os ribeiros Paraibinha e Jundiá,
perto do lugar onde mais tarde existiu o aldeamento do Limoeiro, ficava a
povoação de Osenga, 20 quilômetros a oeste de Macaco. Zumbi situava-se
96 quilômetros a noroeste de Porto Calvo.
Acotirene estava 30
quilômetros ao norte de Zumbi e 180 quilômetros a noroeste de Porto
Calvo. havia duas povoações contíguas chamadas Tabocas, e Acotirene a
leste de Zumbi. Danbrabanga se erguia a 84 quilômetros de Tabocas, no
lugar onde depois existiu o povoado de Sabalangá, no caminho da serra
Dois Irmãos, atual município de Viçosa. A noroeste de Alagoas, 150
quilômetros, na serra do Cafuxi, ficava Andalaquituche. Nas redondezas
da atual cidade de Garanhuns estavam as povoações de Alto Magano e
Curiva” (Décio Freitas, Palmares, a guerra do escravos).
Palmares
A organização social e política dos quilombos deu lugar a inúmeras
especulações e confusões entre os historiadores de diversas tendências.
Alguns acreditam terem sido os Palmares uma república, outros uma
monarquia. Aparentemente os líderes eram eleitos por um conselho de
características militares e havia uma autoridade pessoal que seria o rei
dos quilombos, o que dá a entender que seria uma monarquia eletiva,
como assinalaram alguns historiadores. No período final do quilombo,
este posto estava ocupado pelo Ganga Zumba, nome que para alguns
designaria o cargo, mas que para outros seria o nome próprio do rei. O
mesmo ocorre com Zumbi, que alguns historiadores acreditaram ser a
designação de um cargo militar que corresponderia ao posto de general. A
historiografia mais moderna estabeleceu, de forma relativamente sólida
que ambas personagens existiram de fato e que seus nomes não se referem a
cargos e posições políticas.
Longe de ter sido um aglomerado caótico, os Palmares parecem ter tido
uma organização social e política complexa e muito bem estruturada, com
instituições, leis e costumes definidos. Mais ainda, seriam rigorosas
estas instituições refletindo o estado de guerra permanente do quilombo:
“todos os negros fugitivos que conquistaram a sua liberdade, a
conservam entre os habitantes de Palmares; todos os que se arrancavam
das roças ficavam escravos. Melhor se desenvolveu e apurou esta polícia
(política NR) na defesa externa e interna em um esboço de organização da
justiça e da guerra. Ali eram punidos de morte o homicídio, o adultério
e o roubo; de morte se puniam ainda aqueles que, já sendo livres em
Palmares, voluntariamente regressavam ao cativeiro em casa dos seus
antigos senhores; menor era a pena em que incorriam os escravos de
Palmares que se evadiam. Devia ser assim. A suprema lex na
manutenção de Palmares era a capacidade de manter a liberdade adquirida:
faltar a esse dever era desertar e trair a causa comum e o máximo da
punição devia correr em auxílio dela, a soerguer e sustentar os ânimos
dúbios” (Nina Rodrigues, op. cit.).
O historiador hostil aos quilombolas retrata a extraordinária tensão
de forças na luta pela liberdade e o princípio constitutivo da
organização do quilombo de maneira insofismável.
Do ponto de vista econômico, os quilombos teriam se organizado
através da produção agrícola e do artesanato – muitos escravos detinham
conhecimento em profissões técnicas, inclusive como metalúrgicos e
armeiros – voltado para as necessidades da comunidade e realizada em
caráter comunitário. Parece não haver dúvida do êxito econômico do
quilombo, retratado nos diversos relatos de intenso comércio entre os
moradores do quilombo e os habitantes das regiões próximas, com os quais
os ex-escravos trocavam produtos agrícolas e gado principalmente por
armas e munições.
Segundo Edison Carneiro, “uma das atividades principais dos negros
palmarinos era a agricultura. Os homens do quilombo lavravam e
disciplinavam a terra, beneficiando-se da experiência que traziam como
trabalhadores do eito, na fazendas e canaviais dos brancos.
“A lavoura mais importante era a do milho, que plantavam e colhiam
duas vezes por ano, descansando depois de duas semanas, ‘entregando-se
soltamente ao prazer’, mas também plantavam, de acordo com Barleus,
feijão, batata-doce, mandioca. A expedição Blaer-Reijmbach (1645)
encontrou com efeito, grandes plantações, ‘na maior parte de milho
novo’. Lavouras igualmente importantes eram a da banana e a da
cana-de-açúcar. Os holandeses, em 1645, tiveram de atravessar, no
caminho dos Palmares, ‘um denso canavial na extensão de duas milhas’ e,
depois de passar o ‘velho’ Palmares, andaram cerca de milha e meia,
“sempre por dentro de roças ou plantações abandonadas’, onde acharam
pacovas e canas para matar a fome” (op. cit.).
O mesmo autor assinala ainda que “a expedição holandesa de 1645
encontrou quatro forjas nos Palmares e o governador Fernão Coutinho, em
1671, dizia que os negros rebelados já possuíam ‘tendas de ferreiro, e
outras oficinas, com que poderão fazer armas, pois usam de algumas de
fogo que de cá levam; e este sertão é tão fértil de metais, e salitre,
que tudo lhes oferece para a sua defesa, se lhes não faltar a indústria
que também se pode temer dos muitos que fogem, já práticos em todas as
mecânicas…’” Em contraste com esta situação, assinala que, “em volta do
quilombo, os moradores arrastavam uma existência miserável empobrecidos
pelo domínio holandês e pelas contínuas contribuições, mais tarde, para a
guerra contra os Palmares. Especialmente os moradores das vilas de
Alagoas, Porto Calvo, Serinhaém e Rio de São Francisco (Penedo)” (op. cit.).
A guerra contra Palmares
Durante todo o período de existência do quilombo, a coroa portuguesa
e, por um período, o governo holandês do Brasil, enviaram contra
Palmares dezenas de expedições, das quais cerca de 30 apenas após a
expulsão dos holandeses de Pernambuco.
Terminado o longo período de guerra contra os holandeses, os senhores
de engenho e o governo português intensificaram a campanha contra
Palmares, colhendo, na maioria das oportunidades, retumbantes fracassos
nas mãos dos quilombolas, decididos, bem armados e fortificados. Os
redutos dos palmarinos eram protegidos pelas condições naturais, em meio
a selvas e montanhas que dificultavam o acesso das expedições
repressivas, bem como o transporte de armamentos e a comunicação com as
cidades.
A primeira expedição bem-sucedida, que abre uma aguda crise no
quilombo foi dirigida por Fernão Carrilho, em 1677. Soldado de carreira,
Carrilho conquistara a patente de capitão de infantaria através da
repressão dos mocambos e quilombos na região. Após uma série de
incidentes, em que perdeu metade dos homens, a expedição conseguiu
invadir a povoação de Amaro, ferindo o chefe Ganga Zumba, matando vários
importantes líderes quilombolas e fazendo cerca de 200 prisioneiros.
Voltando a Porto Calvo, Carrilho apresentou o resultado da expedição
como “destruídos os Palmares e vencidos os negros”, o que estava longe
da realidade. No entanto, o sucesso relativo da expedição abriu uma
cisão no interior dos Palmares. O chefe Ganga Zumba decide estabelecer
uma negociação com os brancos e procurar um tratado de paz.
Uma
delegação é enviada à cidade para parlamentar com o governador geral que
a recebe como uma delegação governamental. A partir daí fica
estabelecido um acordo em que o governo se compromete a respeitar a
liberdade e a autonomia dos palmarinos, com a condição de que estes
abandonem os Palmares – cujas terras férteis já eram cobiçadas pelos
brancos – estabelecendo uma comunidade no interior em um lugar chamado
Cucaú, que entregassem todos os escravos fugidos não nascidos nos
Palmares e depusessem as armas. O acordo final foi firmado em Recife,
capital da capitania, pessoalmente pelo próprio Ganga Zumba em 5 de
novembro de 1678.
As terras do quilombo foram distribuídas pelo governador geral entre os grandes proprietários fundiários da capitania.
Contra o que pensaram os senhores de engenho e o governo colonial, o
Quilombo ainda estava longe de terminar. Seriam necessários mais 18 anos
de luta.
Zumbi
A maioria dos quilombolas acabará voltando as costas ao chefe Ganga
Zumba e continuará a luta sob o comando de um novo chefe, Zumbi,
comandante militar do Quilombo.
As incertezas quanto à história de Palmares são ainda maiores no caso
do famoso chefe negro. Alguns historiadores sustentam que se chamava
Francisco, fora escravo de um padre que o educara e o ensinara a ler e
escrever e algum conhecimento do latim para o ofício de coroinha.
Segundo esta versão, o menino educado no catolicismo, teria fugido,
abandonado suas crenças e adotado nome africano. Mais provável é que,
como defende Décio Freitas, teria nascido livre em Palmares, seria
casado e teria filhos.
Mais recentemente, o antropólogo Luiz Mott levantou a suposição de
que o líder negro seria homossexual, o que, embora fracamente
fundamentada, provocou uma injustificada e reacionária reação agressiva
de vários setores do movimento negro contra o antropólogo baiano.
O que é certo é que, ao redor de Zumbi, agrupou-se a maioria dos
quilombolas e apenas mil pessoas seguiram com Ganga Zumba para o Cucaú.
Zumbi retomou o Macaco, impossibilitando a colonização planejada pelos
latifundiários e organizou um plano para destruir o Cucaú que se erguia
como uma ameaça à luta contra o opressor branco.
Os adeptos de Zumbi infiltraram-se entre os moradores do Cucaú e
elaboraram um plano para envenenar Ganga Zumba e, a partir daí, deflagar
uma insurreição que tomasse conta da povoação levando os seus
habitantes de volta para os Palmares. Segundo a versão apresentada por
Édison Carneiro, os conspiradores chegaram a envenenar Ganga Zumba, mas a
conspiração foi revelada prematuramente por alguns dos homens de
confiança do antigo chefe o que possibilitou a intervenção de tropas
governamentais que esmagaram a insurreição, o que de qualquer maneira
levou à destruição do Cucaú.
Confrontado com uma situação de emergência, Zumbi estabeleceu nos
Palmares, uma espécie de governo de salvação publica, ou seja, uma
ditadura revolucionária, impondo a lei marcial, a militarização de todo o
quilombo e a pena de morte para os renegados. Segundo Décio Freitas,
“há informações precisas de que Zumbi, sem perda de tempo, subordinou
toda a vida de Palmares às exigências da guerra implacável que se
anunciava. Deslocou povoações inteiras para lugares mais remotos.
Incorporou às milícias e submeteu a adestramento intensivo todos os
homens válidos. Multiplicou os postos de vigilância e observação na orla
das matas. Despachou agentes para reunirem armas e munições. Reforçou
as fortificações do Macaco a ponto de torná-lo quase inexpugnável.
Finalmente, decretou a lei marcial: os que tentassem desertar para o
Cucaú, seriam passados pelas armas” (Op. cit.).
A reviravolta na situação dos acordos concluídos por Ganga Zumba com o
governo colonial colocam em evidência o valor como líder político e
militar de Zumbi e uma determinação revolucionária que justificam
plenamente a comparação com o grande líder das revoltas escravas da
antiguidade, que quase colocou o império romano de joelhos, Espártaco.
Zumbi não foi, portanto, apenas um símbolo da resistência negra, mas um
chefe enérgico, clarividente e de altas qualidade morais e compreensão
política superior.
O grande mérito de Zumbi foi o de que, com a sua rejeição do acordo
feito por Ganga Zumba e, acima de tudo, pela sua ação enérgica em defesa
da independência do quilombo diante do opressor, denunciou de maneira
insofismável a ilusão que consistia na tentativa de um acordo entre os
escravizados e os escravizadores para estabelecer um modus vivendi nos marcos do regime escravagista.
Os bandeirantes
Após o fracasso do acordo entre o governo colonial e os quilombolas,
novas expedições foram tentadas, inclusive sob o comando do mesmo Fernão
Carrilho, que havia obtido a primeira vitória sobre o Macaco, mas
fracassaram. Finalmente, tendo superado os problemas externos, a coroa
portuguesa pode preparar-se com calma e superar relativamente as suas
contradições internas de forma a organizar uma ofensiva mais efetiva
sobre o reduto de rebeldia negra.
A derrota do legendário quilombo passaria à história como obra de um
paulista, o que, naqueles tempos, era sinônimo da população mais
selvagem do país, sendo a capitania de São Vicente, onde era localizava a
cidade de São Paulo de Piratininga, a mais atrasada de todo o país. Ali
criaram-se as famosas “bandeiras”, tropas mercenárias de brancos,
mestiços e índios cuja missão era fazer a guerra – principalmente aos
índios – por encomenda e expedições arriscadas pelo sertão em busca de
ouro e pedras preciosas. Os nomes dos principais “bandeirantes” (chefes
das bandeiras) – apresentados idilicamente na história oficial como
pioneiros e desbravadores idealistas- como Fernão Dias Paes Leme, Raposo
Tavares, Borba Gato, o “Anhangüera”, que enfeitam as estradas de São
Paulo, estão relacionados com os piores massacres e conflitos com a
Igreja pela escravização dos índios, tendo sido os responsáveis pela
destruição da famosa “república comunista-cristã” dos índios guaranis na
fronteira do Brasil. Esta população peculiar é explicada pelo
desenvolvimento original da capitania de S. Vicente no quadro da
economia colonial. A exploração portuguesa da terra deu-se sempre, pela
debilidade de recursos econômicos e, conseqüentemente, militares dos
portugueses ao longo da faixa litorânea que, do Sul ao extremo do
Nordeste apresenta uma fertilidade inigualável, necessária ao cultivo da
cana-de-açucar. Ocorre que a faixa litorânea da capitania vicentina
apresenta uma faixa estreita em comparação com a margem litorânea do
Nordeste em função da subida do Planalto Paulista, o que, diante da
disponibilidade de terras existente no país inexplorados dos primeiros
séculos, tornava a exploração açucareira da capitania comparativamente
menos atraente que a nordestina que atraia capitais e homens.
A
capitania, particularmente a cidade de S. Paulo, formou-se com uma
população mais rala e sobre a base de uma economia de subsistência na
qual a mão-de-obra indígena era economicamente mais atraente que a cara
mão-de-obra escrava. Este fato econômico gerou outro, a saber, a procura
de metais preciosos que viriam a compensar a ausência do ouro branco
que jorrava no Nordeste. A estes fatos econômicos aliou-se as
necessidades políticas do império português de expandir a sua
colonização, por motivos comerciais, para o interior no sentido de se
apropriar na forma de lucro comercial da riqueza de metais preciosos do
império espanhol no Peru através de Buenos Aires, de Cuiabá e, mais
ainda, da região noroeste do Brasil atual. Estas necessidades econômicas
e políticas fizeram com que se formassem e consolidassem estas tropas
privadas, que supriam as debilidades militares e humanas do império
lusitano, verdadeiros pequenos exércitos especializados na captura de
índios, na exploração das regiões mais inóspitas e da violência a que
não estavam acostumados nem mesmo a duras tropas portuguesas. Como um
resultado excepcional e em grande medida involuntário, os bandeirantes
estenderam o domínio de Portugal até o Sul do país e até as fronteiras
atuais do Centro-Oeste e do Noroeste, além de iniciar a exploração de
metais preciosos de Minas Gerais, dando lugar ao chamado ciclo do ouro
do século XVIII.
Foi um dos mais brutais destes chefes mercenários, o bandeirante
Domingos Jorge Velho, o homem chamado para comandar a destruição da
resistência de Zumbi. Mameluco, ou seja, mestiço de índio com branco, o
paulista foi caracterizado pelos próprios senhores de engenho
pernambucanos, brutais donos de escravos, nas palavras do próprio bispo
de Pernambuco: “este homem é um dos maiores selvagens com que tenho
topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua (tradutor
NR), porque nem falar sabe, nem se diferencia do mais bárbaro tapuia
mais que em dizer que é cristão, e não obstante o haver-se casado de
pouco, lhe assistem sete índias concubinas, e daqui se pode inferir como
procede no mais; tendo sido a sua vida, desde que teve uso da razão, –
se é que a teve porque, se assim foi, de sorte a perdeu que entendo que
não achará com facilidade, – se até o presente, andar metido pelos matos
à caça de índios e índias, estas para o exercício de suas torpezas, e
aqueles para os granjeios de seus interesses” (citado por Edison
Carneiro, op. cit.)
A destruição de Palmares
Depois de muitas idas e vindas, relativas a negociações sobre o
pagamento das tropas, a recompensa aos bandeirantes, a ajuda em homens e
munições e vencidas as resistências dos donos de engenho, estava pronta
a expedição final contra os Palmares. Na primeira tentativa, os
paulistas lançaram-se contra um mocambo próximo da capital do quilombo e
foram rechaçados pelos guerreiros de Zumbi sofrendo pesadas perdas e de
homens e equipamento. As tropas de Alagoas e de Porto Calvo foram
tomadas de pânico e fugiram. Jorge Velho, que havia chegado com mais de
mil homens, entre brancos e índios, voltou para Porto Calvo com 600
índios e 45 brancos.
O bandeirante pediu reforços ao governador-maior e “em novembro de
1793 começaram a chegar a Porto Calvo os comboios de mantimentos e
material bélico da Bahia. Em dezembro chegam os grandes efetivos: 3.000
homens recrutados em Olinda e Recife, comandados pelo capitão Bartolomeu
Simões da Fonseca; 2.000 de Alagoas e Porto Calvo, sob as ordens do
sargento-mor Sebastião Dias Mineli, mais um corpo de elite, sob o
comando o capitão-mor Barros Pimentel. De Penedo e São Miguel chegaram
1.500 homens. Os irmãos Bernardo e Antônio Viera de Mello se
apresentaram à frente de 300 homens e uma boiada. Da Bahia, Paraíba e
Rio Grande do Norte vieram mais 800 homens. Eram ao todo mais de nove
mil homens – brancos afildalgados, mamelucos bronzeados, mulatos
beiçudos, índios, pernambucanos, paulistas, baianos, piauienses,
reunidos no maior contingente militar até então organizado na colônia.
“A guerra dos Palmares transformara-se em uma cruzada contra os negros” (Domingos Jorge Velho e a penetração paulista no Nordeste, Renato Castelo Branco).
Em janeiro de 1794, esta força armada chegou ao mocambo do Macaco e
estabeleceu seu quartel general defronte da enorme paliçada montada por
Zumbi, conhecida como a Cerca Real do Macaco. Ali constituíram
acampamento e construíram um pequeno forte denominado Nossa Senhora das
Brotas. Do outro lado da cerca estavam preparados para lutar cerca de 11
mil guerreiros negros do quilombo.
O cerco à capital, no entanto, não estava dando resultado. Os
palmarinos rechaçaram mais um ataque com grande perdas aos sitiantes que
não conseguiam aproximar-se da Cerca Real : “Foi então que o
capitão-mor Bernardo Vieira de Melo, que comandava a tropa pernambucana,
postada do outro lado das forças de Domigos Jorge Velho, ‘por indústria
sua’ construiu, com seus escravos e solados, uma cerca de 270 braças
(594 metros) de pau a pique, acompanhando a dos negros. Os outros
comandantes – por ordem do mestre de Campo – foram fazendo o mesmo nas
‘testadas’ que defendiam, envolvendo, por fim, numa contra-cerca de
enormes dimensões, o reduto palmarino (…) Ainda assim, a luta parecia
indecisa. paulistas, alagoanos e pernambucanos não podiam aproximar-se
da ‘cerca’ do Zumbi sem perigo de vida… O Mestre de Campo ‘excogitou’,
então, construir uma nova cerca, ‘obliquamente, desde seu quartel a uma
ponta daquela do inimigo, a qual não era defendida de posto nenhum,
fiada com que se terminava em um precipício inacessível’ (…) Na
sexta-feira, 5 de fevereiro de 1694, o Zumbi passou em revista as
defesas da praça e ao chegar a esse ângulo notou que faltava somente
‘coisa de’ duas braças (4,40 metros) para que a cerca oblíqua
encontrasse com a sua. (Os homens de Domingos Jorge Velho só podiam
trabalhar durante a noite e a manhã os surpreendera sem terminar a
tarefa). O chefe negro repreendeu severamente o guarda local e deu um
‘catanásio’ no comandante do posto, dizendo-lhe, de acordo com a
narrativa do Mestre de Campo: – ‘E tu deixaste fazer essa cerca aos
brancos? Amanhã seremos entrados, e mortos, e nossas mulheres e filhos cativos!’”
A alternativa que restou aos guerreiros de Zumbi foi tentar escapar
pela brecha que havia junto ao precipício. Na noite seguinte, centenas
de pessoas procuraram escapar em silêncio por ali e, descobertos pelas
sentinelas, sofreram pesadas baixas com muitos despencando pelo abismo e
centenas de feridos, a tal ponto que, no dia seguinte, as sentinelas
puderam seguir os fugitivos por um amplo rastro de sangue, tendo sido o
próprio Zumbi um dos feridos.
Bernardo Vieira de Mello perseguiu os fugitivos e iniciou-se um
massacre aterrador. Segundo relatos, degolou mais de 200 guerreiros,
somente deixando com vida duas mulheres e duas crianças. Pela manhã,
entraram na cidadela do Macaco. “Os expedicionários degolavam e matavam
sem misericórdia. Menciona-se o alferes João Montez como um dos que mais
se distinguiram na carnificina. Os soldados, disse Jorge Velho,
‘degolaram os que puderam’. Desvairados pela sede de sangue, não
pensavam em fazer presas. Conta Frei Loreto de Couto que avançavam
cortando e matando tudo o que encontravam’ e os cadáveres se amontoavam
‘tendidos tantos que lhes faltou a muitos terreno para caírem’ (…)
Arrasada e incendiada, a cidadela negra ardeu a noite inteira em uma
enorme fogueira cujos rubros clarões puderam – assim reza a tradição –
ser divisados de Porto Calvo. Apenas quinhentos e dez negros apareceram
vivos como prisioneiros” (Décio Freitas, op. cit.).
A fúria das hostes repressivas fora tão intensa que esqueceram-se de
capturar os homens para escravizá-los novamente, apesar do seu alto
valor comercial.
Após a derrota do Macaco, os mercenários de Domingos Jorge Velho
capturaram um por um os demais mocambos dos Palmares matando,
incendiando e degolando com a mesma intensidade em todos os lugares, de
tal forma que somente sobreviveram mulheres e crianças. Em muitos casos,
as mulheres se suicidavam e matavam seus filhos para escapar à
escravidão.
A guerra de guerrilhas
A resistência, porém, ainda não havia terminado. Zumbi escapara à
carnificina e havia reorganizado uma pequena quantidade de guerreiros em
torno a ele, ingressando agora em uma guerra de guerrilhas contra os
brancos. Os sobreviventes começaram a atacar em vários lugares através
de pequenos grupos armados. Esta situação perdurou até o final do ano,
quando finalmente, um dos grupos dirigido por Antonio Soares foi
capturado por André Furtado de Mendonça que torturou o prisioneiro e,
finalmente, conseguiu obter a localização do esconderijo de Zumbi.
“O esconderijo se situava em um ponto recôndito da mata,
provavelmente na serra Dois Irmãos, lugar de desfiladeiros, penhascos
abruptos e garagantas profundas por uma das quais se precipita o rio
Paraíba. Zumbi mantinha sempre junto a si uma guarda de 20 homens, mas
quando Soares chegou seguido à distância pelos paulistas a guarda se
achava reduzida a seis homens.
“O drama foi rápido. Cercado o lugar por Furtado de Mendonça,
encaminhou-se Soares para o chefe, que o acolheu confiadamente. Então,
bruscamente, Soares enterrou-lhe um punhal no estômago e deu sinal aos
paulistas. Acudido logo pelos companheiros e apesar de mortalmente
ferido, Zumbi ainda lutou com bravura. Em carta de 14 de março de 1696
para o rei, Melo e Castro contou que Zumbi ‘pelejou valorosa e
desesperadamente, matando um, ferindo alguns e, não querendo render-se
nem aos companheiros, foi preciso matá-lo e não só a um se apanhou vivo”
(Décio Freitas, op. cit.).
Uma luta sem perspectivas?
Se a historiografia burguesa oficial, como em Nina Rodrigues,
procurou tirar legitimidade histórica à luta do Quilombo, impugnando-o
por ser uma perspectiva de acentuar o atraso nacional, a historiografia
da esquerda nacionalista em geral, a de simpatia foquista em particular,
não foi capaz de atribuir à luta de Zumbi uma perspectiva histórica
real, ou seja, que se caracterizava como uma tentativa historicamente
inviável. Segundo Décio Freitas, um dos principais historiadores do
Quilombo e da luta dos negros brasileiros em geral, a derrota dos
Palmares “estava selada por limitações históricas objetivamente
intransponíveis” (Op. cit.).
Para o autor, a sociedade colonial brasileira, criada nos marcos do
mercado mundial capitalista e dependente dele, é assimilada à sociedade
escravista antiga, ou seja, pré-capitalista, esquecendo-se que o
Quilombo é contemporâneo da revolução burguesa na Inglaterra e que,
histórica e socialmente, está mais próximo, principalmente em suas
perspectivas, das rebeliões camponesas (como por, exemplo, na Alemanha
no século anterior) do que das rebeliões de escravos da Roma antiga.
No entanto, mesmo na Roma antiga, não é correto dizer que as
rebeliões escravas estavam inevitavelmente fadadas ao insucesso. A
rebelião de Espártaco esteve muito próxima de derrotar os exércitos
romanos e de invadir e ocupar a própria Roma, o que não ocorreu em
função das dificuldades da liderança dos rebelados que, naturalmente, se
atemorizaram diante de tão extraordinária perspectiva. A demonstração
de que poderia ter liquidado com o regime escravagista estava em que,
após as guerras servis, o regime escravagista entrou em declínio em
todos os lados, tendo inclusive uma expressão jurídica na forma de
inúmeras leis que colocavam limites à escravidão, feitas pelo próprio
patriciado romano.
Segundo o autor, “a trágica contradição que pesava sobre as rebeliões
escravas consistia em que por um lado, não podiam triunfar a menos que
ganhassem a adesão de alguma categoria social importante e, por outro
lado, esta possibilidade estava objetivamente excluída nos marcos da
sociedade escravista. Deste modo, lutando pateticamente sós, contra tudo
e contra todos não tinham perspectiva. Suas tentativas se limitavam a
uma série de insurreições, de repressões, de novas insurreições” (Op. cit.).
Este raciocínio parte, na realidade, de uma incompreensão da
dificuldade que encontra uma sociedade escravagista para passar a uma
economia baseada no trabalho livre.
A questão central reside em que as
bases econômicas da sociedade escravagista, em comparação com a
sociedade feudal já minada pelo capitalismo ou, mais ainda, com o
próprio capitalismo, não é, via de regra, suficientemente forte para
suportar o abalo gigantesco que representa a revolução das suas camadas
populares contra a ordem social dominante. A revolução política e
social é a maior crise que uma sociedade pode sofrer. É desta crise, e
somente dela, no entanto, que pode surgir a sociedade que significará a
sua superação. Na sociedade escravagista antiga, a revolução dos
escravos contra a opressão não deu lugar, como seria de se esperar, a
uma nova classe possuidora de pequenos proprietários de terras, mas
destruiu as próprias bases daquela sociedade. Ela não arrebentou em um
estouro porque as rebeliões foram derrotadas, mas estas convulsões,
mesmo sem sucesso, minaram a sociedade sem dar a ela uma saída
histórica.
Este processo social, porém, nada tem a ver com uma fraqueza
congênita dos escravos como classe social, conforme pensa Décio Freitas,
mas com a debilidade, naquele caso da sociedade escravagista. No caso
brasileiro, a vitória dos escravos era, teoricamente, possível e teria
dado lugar a uma república baseada em pequenos proprietários de terra e,
possivelmente, em um desenvolvimento capitalista endógeno. Trata-se,
sem dúvida, de uma especulação, mas de forma alguma estamos diante de
uma impossibilidade teórica.
A experiência história da própria escravidão latino-americana
desmente esta análise, como ficou comprovado cerca de 150 anos depois no
caso do Haiti, onde os escravos, aproveitando-se da crise da metrópole
acabaram com a escravidão e com todo o poder da classe dominante
colonial branca da ilha. O caso do Quilombo de Palmares não é diferente.
A comparação com o Haiti está longe de ser coincidência, mas expressa o
temor que se apoderou da classe dominante desde o próprio crescimento
da resistência escrava na Serra da Barriga no início do século XVII. É
notório o empenho colocado pela administração colonial em sufocar a
comunidade rebelde e o pensamento de que esta se erguia como uma ameaça à
própria ordem escravagista.
Por outro lado, em vários momentos, a incipiente burguesia nativa,
particularmente a partir do final do século XVIII e início do século XIX
formulou o programa de extinção do cativeiro. Outra coisa é que a
burguesia que propugnava a emancipação nacional, a emancipação do
escravos, ou seja, as tarefas da revolução democrática se mostrasse
capaz de levá-las adiante. De um ponto de vista teórico, ou seja
potencialmente real, a perspectiva para a libertação do escravo,
particularmente a partir do desenvolvimento ocorrido no século XIX, era a
revolução burguesa contra o regime colonial em seu conjunto. Neste
sentido, a própria abolição, resultado de uma mobilização revolucionária
manipulada e frustrada, não realizou a verdadeira emancipação do negro
justamente porque foi a expressão da incapacidade da burguesia
brasileira de realizar as tarefas da democracia revolucionária
plenamente.
O fim da escravidão
O regime de trabalho escravo no Brasil foi o último a ser eliminado
em todo o mundo, chegando até 1888, quando todo o seu potencial como
regime de produção encontrava-se exaurido. As derrotas dos incontáveis
movimentos de luta dos escravos na colônia e dos inúmeros movimentos
revolucionários diante do poder centralizado do “império” está na raiz
deste desenvolvimento histórico. Para liquidá-lo, mesmo assim, foi
necessário uma das maiores mobilizações de massas a que o país assistiu
em toda a sua história.
Referindo-se à destruição do “Quilombo” fantoche do Cucaú, a revista
Veja, em matéria a respeito dos 300 anos de Palmares (22/11/1995)
caracteriza que “estava destruída a experiência de negociações que
poderia ter aberto precedentes importantíssimos nas futuras relações
entre senhores e escravos. Se Cucaú, onde a liberdade e o direito à
propriedade dos negros eram reconhecidos, não tivesse fracassado pelo
racha interno e pela hostilidade dos brancos, a história da escravidão
no Brasil poderia ter sido diferente – e Ganga Zumba hoje talvez fosse
reconhecido como um Nelson Mandela avant la lettre, um negociador
refinado que encontrara uma solução de convivência. Não aconteceu assim
e quem ficou para encabeçar a resistência sem concessões foi Zumbi.
Entrincheirado em Palmares, com um regime extremamente militarizado, ele
partiu para o tudo ou nada”. É transparente que esta delirante
“interpretação” da história da escravidão nada mais é que uma
transposição nada sutil das ilusões políticas do presente para o século
XVII, mas estabelece as perspectivas políticas que se colocam, inclusive
hoje.
Deixando de lado a idéia fantástica da convivência pacífica entre
escravos e seus donos, garantidos os direitos políticos e sociais dos
primeiros, a história do país comprovou que a própria idéia de uma
solução negociada para o problema do negro não tem qualquer fundamento.
Muitos estudiosos esquerdistas, inclusive participantes dos
diferentes movimentos pelos direitos dos negros, disseminaram a tese de
que a abolição foi uma dádiva das classes dominantes (dos senhores de
escravos!) e de que o negro não teria participado do movimento
abolicionista, daí o caráter limitado da emancipação do trabalho servil.
Na realidade, tanto uma tese quanto a outra são extraordinariamente
falsas. Primeiro, que o fim da escravidão foi o resultado de uma das
maiores mobilizações de massa já realizadas no país. A chamada Lei Áurea
– apresentada como uma magnanimidade da princesa Isabel, regente do
país – foi aprovada pelo parlamento como única alternativa às tendências
revolucionárias que já começavam a provocar uma profunda crise
institucional, inclusive com o amotinamento do Exército, que se recusava
abertamente a cumprir as ordens governanamentais referentes à repressão
dos escravos fugitivos das fazendas do Rio e de São Paulo.
A não
intervenção dos escravos é outro mito. Nos momentos finais da campanha
abolicionista, que havia obtido até então precários resultados, a
tendência ao levante generalizado dos escravos era patente e esta
tendência era o resultado de um longo trabalho político e de
organização, em particular nos estados mais desenvolvidos do país. Em
Campos, no interior do Rio de Janeiro, os escravos levantavam-se em
série e queimavam as fazendas, obrigando os fazendeiros, diante da
paralisia que havia acometido o Exército, a organizar verdadeiras
milícias pára-militares para enfrentar a rebelião. Em São Paulo, a
crescente fuga de escravos, auxiliadas por uma ampla organização nas
cidades (os “caifazes” de Antônio Bento) já estava se transformando em
um levante, com a fuga em massa conhecida como a “grande marcha”, a
qual, também havia paralisado o Exército.
O regime político foi obrigado
a conceder a emancipação (sem o ressarcimento reivindicado pelos
fazendeiros, muitos dos quais foram simplesmente à falência) para evitar
uma crise revolucionária de consequências imprevisíveis, principalmente
se apoiada em um levante generalizado dos escravos concentrados naquele
momento na região Sudeste do país. Apresentava-se, uma vez mais, a
fórmula tradicional do “prussianismo” brasileiro da solução tardia e
castrada por cima como consequência, para prevenir e para realizar
abortivamente os objetivos da eclosão iminente da rebelião generalizada
dos de baixo. Este fato é confundido, de modo sistemático na
interpretação da esquerda sobre a história nacional, com uma ausência de
mobilização revolucionária. Evidentemente que tais soluções somente
foram possíveis diante do caráter capitulador da direção burguesa do
movimento abolicionista (Nabuco, Patrocínio etc.) cujo programa
colocava-se em aberta oposição à mobilização dos escravos e da fraqueza
dos setores pequeno-burgueses revolucionários (e ainda mais da classe
operária, extremamente incipiente naquele momento) – organizativa, mas,
principalmente, programática, uma vez que não colocavam nem a questão da
República, nem a questão agrária de maneira consequentemente
democrática – deste mesmo movimento (os irmãos Lacerda no Rio, Silva
Jardim, Luiz Gama e, depois, Antônio Bento, em São Paulo).
A experiência da história assinala claramente que nada, absolutamente
nada, que diga respeito às reivindicações dos explorados – e.
particularmente, da enorme população negra do país entre eles – foi
conseguido sem uma luta encarniçada, prolongada e cruel. E isto serve
para a situação presente do negro no país.
A luta do negro hoje: conclusões
A população negra, entendidos aí, logicamente, os negros e mestiços
que, no Brasil são concebidos como entidade meta racial, conforme
assinalou o próprio Gilberto Freire, compreende mais de 60% da população
total e, assim como nos EUA, está em expansão. Deste total, os que
conseguiram ascender às chamadas classes médias é uma minoria
absolutamente insignificante.
O número de matrículas de negros nas
universidades públicas, por exemplo, é menor que 5%! Os meninos de rua,
que se contam às centenas de milhares em todo o país são esmagadoramente
negros, assim como a população das dezenas de milhares de favelas das
grandes cidades. Os salários do negro são menores do que os dos brancos e
aqueles estão excluídos inclusive dos melhores postos da indústria. Nos
últimos 20 anos de crise capitalista esta situação acentuou-se
brutalmente. Passada a euforia do “milagre econômico” da década de 70,
no Brasil, assim como nos EUA as ilusões de que a situação social do
negro poderiam melhorar através da integração ao regime burguês começam a
se desfazer como fumaça ao vento.
Um dos aspectos centrais da atual crise capitalista – que é uma crise
histórica, ou seja, que coloca em questão todo o regime econômico e
social a partir dos seus fundamentos – é a eclosão do conjunto de
problemas da formação nacional não resolvidos pela história do país, ou
seja, pela sua classe dominante: a questão da independência nacional, o
problema da unidade nacional, a questão agrária e, também, a questão do
negro, como população oprimida dentro do país. Já em 1822, todos estes
problemas estiveram agudamente presentes como preocupação – e como
elementos de crise – nas proposições políticas dos homens (José
Bonifácio) que articularam a independência política sui generis
do país. Em todas as grandes crises políticas nacionais anteriores
(1888-1889, 1893, 1930, 1937, 1964 etc.) estas contradições
manifestaram-se com maior ou menor intensidade, mas nunca como na crise
atual, apesar do (ou talvez devido ao) seu lento desenvolvimento.
Pela primeira vez desde a abolição da escravidão, a questão do negro
vem se colocando no centro das contradições políticas nacionais e a
principal manifestação disso é o crescimento da consciência política do
negro e das suas lutas desde 1977.
Esta situação exige da classe operária e dos revolucionários a
elaboração de um programa que apresente uma perspectiva política clara
ao conjunto das tarefas democráticas não resolvidas pela burguesia, aí
incluída a questão do negro.
A confusa discussão existente na esquerda brasileira sobre o problema
do negro, onde vigora uma oposição abstrata entre o problema “de
classe” e “de raça” somente pôde ser solucionada pelo marxismo. O
problema do negro é uma questão de direitos democráticos e, em
perspectiva, uma questão de nacionalidade oprimida dentro de um Estado
dominado pela população branca, no caso brasileiro de uma maneira
extrema, como na África do Sul. O partido do proletariado não pode
enfrentar o problema sem um programa específico para a população negra a
qual não se contentará, e nem deveria, em arquivar suas reivindicações
em nome de uma futura redenção pelo socialismo e pela ditadura do
proletariado (mais ainda, de algum “governo democrático e popular” que
não é mais que uma designação demagógica para um governo burguês).
Este programa passa, além da defesa dos direitos democráticos de
todas as camadas da população negra, também pela discussão acerca do
direito à autonomia da população negra diante do regime burguês no marco
do Estado Nacional, da mesma forma como Trótski a postulou para os
negros norte-americanos na década de 30. Esta questão mantém hoje toda a
sua atualidade diante da envergadura histórica da crise capitalista
tanto no Brasil como nos próprios EUA, cujas características são muito
semelhantes, senão idênticas às da situação do negro brasileiro, apesar
da sua maior evolução política e cultural. O reconhecimento do direito à
autonomia da população negra em geral ou em determinados estados de
maioria negra significa o reconhecimento por parte da vanguarda operária
do direito a uma população que tende a se constituir como uma
verdadeira nacionalidade à sua autodeterminação, como parte da luta pela
derrubada do regime burguês, pela revolução proletária e pela ditadura
do proletariado.
Outra coisa é a idéia utópica de parte dos movimentos negros no
sentido de que a reivindicação democrática e nacional esgota ou, mais
ainda, pode efetivamente ser solucionada efetivamente sem se tocar no
problema central da ditadura do proletariado e do socialismo. A luta
cotidiana pelas reivindicações da população negra somente poder ter como
perspectiva política primeiro a derrubada do regime burguês e do regime
racista que são uma única e mesma entidade, inseparáveis entre si.
Segundo, pela sua substituição não por um governo burguês democrático,
que é uma impossibilidade nos marcos do imperialismo mundial, mas pela
ditadura do proletariado.
A luta do partido revolucionário em defesa dos interesses da
população negra tem como ponto de partida esta população negra no seu
conjunto, independentemente das distinções de classe no seu interior, de
forma que os atentados à população negra não podem ser filtrados
segundo um critério baseado na situação social do oprimido. Por outro
lado, é preciso deixar absolutamente claro que a luta conseqüente,
enérgica e decidida em defesa deste programa revolucionário para a
população negra terá como base fundamental a população negra proletária e
pobre do campo, que são os setores que o partido revolucionário da
classe operária vê como vanguarda da luta dos negros e, também, da
classe operária em seu conjunto.
Fonte: Rui Costa Pimenta
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