Sem nunca haver trabalhado com equipamento profissional, o camelô
Simião Martiniano já produziu e dirigiu oito filmes. Enquanto
a Fundarpe investe até R$ 230 mil em projetos de audiovisual, ele
gasta uma média de R$ 1,5 mil por produção, gravada
em VHS.
Fenômeno singular na atual produção audiovisual de Pernambuco, Simião
Martiniano, 70 anos, conhecido como o camelô do cinema, já produziu oito
filmes, entre curtas e longas-metragens, a maioria rodada de forma
artesanal em VHS por falta de dinheiro para filmá-los em película. Do
início, há quase três décadas, até hoje ele nunca gravou com equipamento
profissional de cinema e nenhum desses filmes, dos quais trabalha como
escritor, produtor, diretor e, às vezes, ator, foi lançado em circuito
comercial. À margem do sistema, Simião realiza os trabalhos na base do
mutirão e exibe suas produções na rua, em colégios, associações ou
cinemas municípais.
Antes de chegar a seus próprios filmes, Simião Martiniano começou
fazendo ponta como ator, ainda quando era mestre de obra no início dos
anos 60, no Recife. "Um colega do trabalho me convidou para fazer uma
ponta no filme Quando o gigante desperta, de Pedro Teófilo. Eu fazia um
soldado holandês. Na metade do filme, acabou o dinheiro e a gravação foi
interrompida", conta, sorrindo. Na segunda tentativa, outra polêmica:
"Terminou a gravação do filme Luciana, a comerciária, de Mozart Cintra,
mas a censura não permitiu a exibição". Nesta época, Simião fez um curso
de cinema de seis meses com o diretor dos filmes.
Se as experiências como ator começaram frustradas, as de produtor
seguiram o mesmo caminho. Simião escreveu e produziu a radionovela Minha
vida é um romance (que também se transformou em um cordel), mas o que
estava planejado para acontecer em 100 capítulos durou apenas cinco. "Aí
se chamou doidice, viu... Eu gravava dentro de casa mesmo", lembra. Simião Martiniano, então, adaptou o
roteiro da novela para o seu primeiro filme, Traição no Sertão (1979),
que mistura ficção com parte da sua história.
Gravada em Super 8 de uma forma amadora e com vários problemas de
edição (como cortes bruscos nas imagens), Traição no Sertão custou o
equivalente hoje a R$ 1,5 mil. "Os atores, que são meus amigos,
trabalharam de graça e até pagaram para atuar. Os equipamentos também
eram deles", diz o aposentado, que vive com um salário mínimo por mês
mais cerca de R$ 200 das vendas no Camelódromo.
Mesmo com a precariedade dos filmes e os acabamentos modestos,
Simião e toda a equipe que atua junto a ele são devidamente registrados
no Conselho Federal de Cinema. Eles formam o Grupo Cineteatro Clênio
Wanderley. As fitas do cineasta-camelô, ainda ignoradas pela maior parte
do púiblico local, "mistura gêneros estrangeiros e elementos
nordestinos com enredos de inspiração autobiográfica e popular", como
afirma o radialista André Carlos Heliodoro, estudioso da "obra
martiniana".
MAZAROPPI
Fã do brasileiro Mazaroppi e elegendo o filme O cangaceiro (1953), de
Lima Barreto, como o melhor de todos, Simião, contraditoriamente, não
vai ao cinema. A última vez foi no fim da década de 70. Atualmente
assiste a filmes em DVD na casa onde vive, no bairro de Socorro, em
Jaboatão, e também na velha televisão Sharp 14'', datada do início dos
anos 80, instalada no seu box. E é no videocassete da barraca que ele
coloca continuamente suas produções. Seus filmes estão à venda ao preço
de R$ 20, para pernambucanos, a R$ 30 ("Para pessoas de fora", explica).
"Se não tiver uma cópia na hora, a gente providencia", apressa-se em
dizer o camelô, que comercializa também fitas VHS e vinis usados.
Em 1998, Simião foi cinebiografado em Simião Martiniano: o Camelô do
Cinema, dirigido por Clara Angélica e Hilton Lacerda, documentário
vencedor do II Festival de Cinema do Recife naquele ano. Só assim ele
ganhou algum prestígio, conseguiu patrocínios e chegou a participar do
programa Jô Soares, na Rede Globo. Atualmente, os holofotes se apagaram,
mas o cineasta-camelô continua produzindo. O curta O show variado, que
recebeu incentivo de R$ 40 mil da Prefeitura do Recife, já foi gravado,
mas a verba para editar ficou pequena. "Preciso que outro projeto seja
aprovado para editar as filmagens", diz, esperançoso.
Apesar da falta de conhecimentos acadêmicos sobre a técnica e a estética
do cinema, Simião possui um trabalho de ficção único nos gêneros de western,
terror, artes marciais e comédia. Além de escrever, produzir e dirigir
os filmes, ele também se arrisca como músico, cantando as
trilhas sonoras. "Eu faço a cultura do Estado. Pela cultura que eu fiz,
talvez eu merecesse mais reconhecimento. Até no Canadá eu sou conhecido.
Sou um dos melhores cineastas de Pernambuco", gaba-se, orgulhoso. Como relembra
Simião, o filme A valise foi trocada foi assistido por mais de 300 pessoas
no meio da rua, em um telão montado pela TV Cultura em São Paulo. Época
em que colhia ainda a fama vinda com o filme sobre sua vida.
por ISABELLE FIGUEIRÔA
do JC ONLINE
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