Por Luís Fernando Praga
Joãozinho pega o coletivo diariamente às 5:30. Às 6:10 apanha o
segundo ônibus que o deixa na porta da escola às 7:00. Cumprimenta
alguns colegas e com sua pesada mochila entra ligeiro na sala para não
atrasar o começo da aula. O professor Joãozinho atravessa a cidade, de
uma periferia à outra para viver.
Viver, para Joãozinho, é fazer com que sua vida tenha algum sentido. É
sentir prazer em aprender e poder ajudar pessoas a extraírem prazer do
aprendizado. É transferir e trocar conhecimentos. É encontrar gente. É
ter o que comer e onde morar dignamente. É tratar e ser tratado com
respeito.
Jairo para em frente à escola e nota os olhares das meninas quando
sai de seu carro esporte. Os meninos comentam e Jairo sente-se bem com a
admiração das garotas e com a inveja dos garotos. Jairo mora a duas
quadras daquela conceituada escola particular e, atraindo olhares, entra
na sala atrasado e sem pedir licença à Cláudia, que pausa a explicação
para que Jairo cumprimente e conte as novidades ao colega do lado.
Joãozinho tem uma classe com 40 alunos pobres, com histórias de
privações e sofrimentos que comprometem o aproveitamento escolar. O
professor sente que apesar de seu empenho, pouco do que diz é
aproveitado. Nota, entretanto, que alguns alunos, como Janice, têm um
brilho diferente nos olhos. É esse brilho, vindo do fascínio por
aprender, que justifica todo o esforço empreendido por aluno e professor
para estarem naquele lugar.
Cláudia vai pra escola de metrô e tem uma sala com 25 alunos, todos
ricos, com histórias de abundância e prosperidade que comprometem também
seu bom aproveitamento escolar. Cresceram acreditando ser melhores e
mais dignos de viver do que outras pessoas. Os alunos de Cláudia se
enxergam superiores a ela e consideram que não precisam de nada daquilo.
Alunos com o olhar especial de Janice também existem naquela classe,
como Humberto, e era apenas a eles que chegavam as palavras de Cláudia.
Apesar do desempenho escolar abaixo da média, os alunos de João são
em regra muito obedientes, pois tiveram berço. Nasceram no berço de uma
sociedade que afirma a todo instante que eles são piores que os demais.
Que nunca conseguirão ter um carro ou uma casa como os da novela. Que se
pegarem alguma doença banal irão morrer, pois não são ricos. Que jamais
chamarão a atenção daquela paixão secreta, porque suas roupas são
simples e puídas. Então, criados num berço que os fez crer que não valem
nada, são submissos e passivos… enquanto não explodem.
Os alunos de Cláudia também tiveram berço. Em seu berço, Jairo e a
maioria de seus colegas aprenderam que podiam de tudo, que eram a nata,
que eram exemplos de sucesso e que todos desejam ser como eles.
Aprenderam que estavam protegidos, pelas leis, pelo dinheiro e pelos
muros e carros blindados, das injustiças, das doenças e dos pobres.
Aprenderam nesse berço que são melhores que os demais e não devem
prestar contas a gente de castas inferiores como Cláudia.
É complicado para João fazer seus alunos acreditarem que não são
inferiores a ninguém, apesar do que dizem a sociedade e as novelas.
Cláudia tem dificuldades em mostrar a seus alunos que ter dinheiro não os faz superiores a seus semelhantes.
Enfrentar o desrespeito, a humilhação, a violência física e o assédio
sexual de seus alunos é uma condição inerente ao trabalho de Cláudia.
Ela precisava viver e seu viver é como o viver de João. Para comer e
morar com dignidade ela se submete a dar aulas naquela escola.
Para completar-se como ser humano, em seu horário de almoço, Cláudia
pega duas conduções, almoça no ônibus e chega à mesma escola da
periferia onde o professor Joãozinho leciona de manhã.
João, para se alimentar e morar dignamente, em seu horário de almoço
faz o caminho inverso e vai lecionar na escola particular onde Jairo
estuda.
Quando Cláudia dá aulas na escola da periferia ela é mais respeitada
do que na escola particular, mas ainda assim sofre abusos, pois alguns
daquele alunos submissos lembram-se de terem aprendido que são
inferiores a todo o resto, menos à mulher, e Cláudia é a oportunidade
que esperavam para demonstrar algum tipo de superioridade e poder.
Mas o olhar de Janice misteriosamente compensa o perigo e a humilhação sofridos e Cláudia não desiste.
Jairo fica feliz quando Joãozinho entra na sala, pois agora pode
exercitar seu preconceito de outra forma. Além de ser mais rico e
poderoso que João, Jairo é branco e João é preto. A ignorância de Jairo o
leva a entender aquilo como algo que rebaixe ainda mais seu professor,
então Jairo abre sua caixa de ferramentas fascistas e piadas cruéis.
O olhar e os questionamentos de Humberto permitem que João releve as
inconveniências infantis de Jairo e suporte passar por tudo aquilo.
À noite João e Cláudia se encontram em uma importante avenida da
cidade. São grandes amigos e reivindicam melhores condições de trabalho
para a categoria. Juntos, apanham de policiais que foram seus alunos
naquela escola da periferia e que seguem ordens de políticos que foram
seus alunos naquela escola particular.
Chegam a suas casas bem tarde, cansados e feridos, imaginando a
difícil tarefa de enfrentar o dia seguinte. Não sabem explicar porque
devem ir, mas sabem que irão para ver novamente os olhares de Janice e
Humberto.
Percebem que Janice e Humberto são alunos diferentes, que não se
deixaram iludir pelas supostas evidências sociais que os colocam em
patamares evolutivos diferentes. São alunos que sabem que a sociedade
está doente e acreditam que a cura está no conhecimento.
Cláudia e João ajudaram aqueles dois alunos a despertarem para o fato de que há uma infinidade de ignorâncias a se esclarecer.
Isso os tornou questionadores de certezas impostas e mais tolerantes
com as ignorâncias alheias. Isso os impediu de se tornarem submissos a
arbitrariedades ou arrogantes com quem passasse por situação de
fragilidade. Isso os fez questionar os donos da verdade e os donos de
pessoas.
Janice e Humberto não acreditam mais na sociedade que diz e age como
se os negros, as mulheres e os pobres fossem inferiores. Não creem que
alguém valha mais por ter mais dinheiro. Não se veem como superiores ou
inferiores a ninguém, mas como gente, e sabem que gente tem sempre o que
aprender e o que ensinar.
Professores como João e Cláudia conseguiriam facilmente outra
ocupação que lhes garantisse um salário melhor para alimentar seus
corpos, mas nenhuma ocupação poderia substituir aquela vocação, a única
capaz de lhes provir um salário que alimente suas esperanças.
O tempo passou e João e Cláudia ainda lecionam. Ainda passam por
situações difíceis e convivem com a injustiça diariamente, mas agradecem
pela escolha que fizeram e se comovem nessa data, quando recebem a cada
ano, mais e mais mensagens de Janices e Humbertos, cheias de carinho,
notícias, questionamentos, reconhecimento, gratidão e no final há sempre
um: “Você mudou a minha vida e isso não tem preço!”
Obrigado, prô!
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