Após ter os pais assassinados por colonos luso-brasileiros, o bebê que
iria se tornar o grande líder acabou passando sua primeira infância em
liberdade e sob criação de um padre (Melo) e uma mulher escravizada
(Madalena).
De acordo com a visão implementada pelo quadrinista paulista Marcelo
D’Salete em seu novo romance gráfico, “Angola Janga”, o lendário Zumbi
dos Palmares seria filho de um casal que habitava o mocambo do Macaco,
capital do maior quilombo da história do Brasil.
A passagem de “Francisco” (seu “nome cristão”) para Zumbi é um dos
pontos-chave para se compreender a complexa teia de relações que
constituem a história de Palmares e suas implicações.
D’Salete
passou 11 anos pesquisando os contextos político, social e histórico de
“Angola Janga” (“Pequena Angola” na língua banto quimbundo, nome
original de Palmares) para soltar, finalmente, pela editora Veneta, um
robusto romance gráfico com mais de 400 páginas que definitivamente
marca a história das HQs brasileiras.
A pesquisa incluiu diversas
fontes primárias (como visitas ao Memorial de Palmares, em Alagoas) e
inúmeros estudos acadêmicos históricos e sociológicos, além de registros
da época, para fomentar sua ficção com precisa referencialidade. O
resultado é nada menos que acachapante.
Os premiados
quadrinhos de D’Salete estiveram desde sempre engajados em propor uma
abordagem da cultura e das condições de vida dos afro-descendentes no
Brasil, seja em grandes metrópoles contemporâneas ou no passado
colonial.
Logicamente, sua publicação não se trata de mera ação
afirmativa, mas sim de uma sólida visão artística de intensa e
inteligentíssima problematização das difíceis questões envolvendo
racismo, sociedade e poder. “Angola Janga” é sua obra-prima e chega para
consolidar sua estética e olhar.
Teia de complexidades narrativas e temáticas
A teia é um dos signos ancestrais africanos (de origem ganense) utilizados pelo autor para mapear simbolicamente sua complexa narrativa que trilha a trajetória das últimas décadas de Palmares, um quilombo situado entre Pernambuco e Alagoas.
A teia é um dos signos ancestrais africanos (de origem ganense) utilizados pelo autor para mapear simbolicamente sua complexa narrativa que trilha a trajetória das últimas décadas de Palmares, um quilombo situado entre Pernambuco e Alagoas.
D’Salete não utiliza letreiros para narrar os entrelaçados plots que
envolvem dezenas de personagens nas diversas investidas do governo
contra o quilombo e suas lideranças. Tampouco é fácil compreender as
relações dos inúmeros flashbacks e o vai e vem narrativo
plasmado em ilustrações sólidas, minuciosamente detalhadas para
acompanhar o sofisticado panorama político-social da época. “Angola
Janga” só pode ser lida como uma obra de profunda imersão.
Sabendo
disso, o autor “recheou” o livro com textos explicativos, mapas e
ilustrações, fazendo da leitura igualmente um ato de pesquisa por parte
do público. Isso não quer dizer que D’Salete facilita, mas expande a
experiência de fruição da obra. Dentre seus diversos recursos para
contar a história, incluem-se o zoom, a alternância de pontos de vista, a
fuga à abstração e os respiros poéticos.
Porém, à parte o
requintado acabamento e o delineamento artístico de “Angola Janga”, é a
flagrante humanidade da obra que verdadeiramente comove. O protagonismo é
de negros e negras em um sistema social horrível demais para ser
traduzido em palavras. Os personagens são ricos em nuances e alma, nunca
planos ou estereotipados.
Comove, por exemplo, o
trágico papel do “mulato Soares”, braço-direito de Zumbi. Ou do líder
anterior de Palmares, Ganga Zumba, vítima de uma guerra civil entre
quilombos. Ou Zona, aspirante ao posto mais alto, e seu pacto com o
governo de Pernambuco para assumir Angola Janga.
O papel dos brancos também é desenhado com sofisticação e ambiguidade, como ocorre no caso do menino Joaquim, que acaba se tornando palmarista. Mesmo
os sanguinários bandeirantes possuem suas falhas trágicas, como narrado
na história do monstruoso Domingos Jorge Velho.
A ligação direta
da realidade colonial com nosso triste e segregado mundo atual, no
entanto, reside mesmo na pequena sobrevivente Dara, figura feminina que
acaba simbolizando, ao mesmo tempo, fertilidade, resistência e
continuidade. Esperança, enfim.
“Angola Janga” possui
inúmeros méritos artísticos. É a mais extensa publicação em quadrinhos
já produzida no Brasil. Certamente figurará em posições altas nas listas
de melhores de 2017. É uma obra grandiosa e meticulosa. Porém, nada
disso se equipara à sua importância social. Esta é simplesmente
incalculável.
Por Ciro Marcondes Do Metrópoles
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