Há mais coisas entre a teoria e prática do que você pode imaginar antes de pisar em sala com crianças ou adolescentes
Que professor em sala de aula nunca sentiu que havia uma
grande distância a ser percorrida entre a teoria e a prática da
profissão? “Tudo que estava além da lousa, eu só fui aprender na
prática. Ninguém me contou”, diz Di Gianne de Oliveira Nunes, docente de
História na Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC),
presídio em Lagoa da Prata (MG). Ao longo dos 14 anos na carreira,
algumas situações já são conhecidas e melhor contornadas pelo professor.
“A prática faz você melhorar, mas cada turma é uma experiência única”.
O
cenário de sala lotada, muitas turmas, problemas de infraestrutura,
comportamento e as dificuldades de aprendizagem pode ser ainda mais
desesperador para quem é iniciante – mesmo no caso de quem é
familiarizado com a dinâmica da vida docente. “Muitas pessoas da minha
família são professores. Eu sempre estive perto dessa realidade, mas
acontecem coisas na escola que você não imagina”, conta Lorena Carvalho,
professora do 1º ano em Mogi das Cruzes (SP) e autora da página Professora Coruja.
Relembrando seus primeiros anos de docência e algumas experiências que
nunca deixam quem lidera uma sala de aula, três professores contam o que
ninguém contou para eles antes de encararem suas primeiras turmas:
1) Todos os dias dentro da sala de aula são imprevisíveis
Você
passou horas em cima do planejamento da semana, adiantou as possíveis
perguntas que os alunos poderiam fazer sobre o conteúdo da aula,
considerou a dinâmica que usaria para introduzir a matéria… mas não foi
bem assim que aconteceu quando chegou na hora da aula? Não se preocupe,
você não é o único! A dinâmica da sala de aula é influenciada por muitos
atores: são ali 30 ou 40 alunos com experiências e personalidades
diferentes e um adulto entre quatro paredes para orquestrar tudo. E não é
como se a sala de aula fosse um espaço paralelo do universo: futebol,
política, polêmicas, redes sociais, sentimentos… tudo vira pauta nas
conversas da turma e influencia o ambiente. No meio disso tudo, é
inevitável prever o que pode acontecer nos 50 minutos de aula. “Lecionar
é uma história por dia”, define Di Gianne.
2) Às vezes, você acha que não vai conseguir chegar até o fim do ano
“No
meu primeiro ano como alfabetizadora, eu pensei: o que é que eu estou
fazendo aqui?”, confessa Lorena. Uma série de componentes davam tom ao
questionamento da professora: além da insegurança natural de quem é
iniciante na profissão, a ansiedade dos pais e responsáveis para que as
crianças começassem a ler e escrever e a autocobrança de garantir o
aprendizado da sua turma colaboraram para a sensação de dúvida. O
sentimento é recorrente entre os professores e se dão em diferentes
momentos da carreira e por motivos variados. Alguns professores porque
têm turmas impossíveis de controlar… outros, às vezes, por estarem com
uma sala muito distinta das que estão habituados. Di Gianni, por
exemplo, acostumado com as turmas do Ensino Médio, decidiu se aventurar
pelo 6º ano. “No início, eu achei que não fosse conseguir chegar no
final do ano, era uma linguagem totalmente diferente da que eu estava
acostumado”. Levou um tempo para que o professor se habituasse às
peculiaridades da faixa etária, mas logo ele superou o sentimento. “A
prática faz você melhorar”.
3) Algumas vezes você será a pessoa de referência na vida de um aluno para as horas boas e ruins
São
compartilhamentos de alguns segredos e histórias, outros pedidos de
conselhos e até mesmo de ajuda. Por ser uma figura que pode compartilhar
muitos anos da vida escolar de um aluno, o professor, inevitavelmente,
acaba se tornando uma outra referência – sendo, por vezes, até mesmo a
principal ou única – para alguns alunos. “Um dia uma ex-aluna me ligou
no telefone da escola. Ela disse que tinha tomado veneno para rato, mas
que não queria morrer”, relembra Di Gianne. O professor saiu para
socorrer a ex-aluna e, dias depois, ao visitá-la, ele a questionou sobre
o motivo de tê-lo escolhido para a ligação. “Ela disse que lembrou de
uma aula minha sobre a Era Vargas em que o tema acabou caindo também no
suicídio do presidente e em assuntos mais existenciais”. Na aula, o
professor disse para a turma que se alguém pensasse em suicídio, poderia
contar com ele. “Anos depois, uma aula sobre Vargas salvou uma aluna.
Eu nunca pensei que a gente seria tão tudo na vida de muitos alunos”.
4) Alguns professores são tão competitivos que você se sente a própria loja da concorrência
A competição de quem se destaca mais é aberta para todas as categorias. “A guerra de egos para ver quem manda mais é a pior coisa que eu já passei na escola”, diz Danúbia da Costa Teixeira, professora de Língua Portuguesa e Língua Inglesa na EE Alberto Caldeira, em Guanhães (MG). “Às vezes, tem competição até para ver quem reprova mais alunos, achando que é o professor mais respeitado”. E o que poderia ser uma rede de colaboração, pode acabar virando concorrência. Nessa de ver quem faz mais, até dedurar o que acontece nas salas alheias parece valer. “Em uma aula sobre reis absolutistas, coloquei um aluno sobre a carteira para fazer uma pequena encenação”, conta Di Gianne. Por acaso, um docente viu e a história de que o novo professor permitia até que os alunos subissem nas carteiras chegou até a gestão da escola. “Às vezes, a relação entre professores até parece concorrência entre lojas”, define o professor.
5) Você será surpreendido pelos alunos quando menos esperar
Especialmente
as crianças são reconhecidas pelas “pérolas” que soltam em comentários
despretensiosos ou análises inesperadas. Mas não são apenas comentários
que podem fazer o queixo dos professores cair. São perguntas inesperadas
que podem te deixar em uma saia justa ou te levam a pensar sobre coisas
que nem estavam em seu radar; provocações que podem ser o início de um
novo projeto ou apenas te tirar do sério; atitudes que surpreendem pela
sua maturidade ou pela imprevisibilidade. A professora Lorena,
acostumada a dar aulas para os pequenos, afirma que as surpresas vão
desde coisas simples, como avaliar que a mãe do pintor Van Gogh
provavelmente era muito brava já que o quarto dele era arrumado e não
tinha nenhum brinquedo até tentativas de resolver conflitos entre a
turma. “Já presenciei uma criança na Educação Infantil dando uma lição
de moral sobre uma outra que implicava muito com os colegas”, relembra.
6) Ser professor é viver várias gerações
Você
achou que não viveria várias gerações porque não acumulou décadas na
profissão? Esqueça… entra ano e sai ano, os alunos trazem suas modas
para o espaço escolar e, se você não estiver ligado na molecada, pode se
perder nas referências. “Ser professor é viver várias gerações. Tinha a
moda da franja “emo” e logo passou. A moda, músicas, os cabelos… tudo
vai mudando”, reflete Di Gianne. É por esse motivo, que ele se mantém
atento ao que os alunos estão consumindo e falando sobre. Através de
letras de músicas que os alunos se identificam, como o rap, o professor
vai abrindo caminhos para conteúdos do seu componente curricular.
7) Você é lembrado por coisas que nem imaginava
Pode
ser uma notícia sobre um tema que você falou em sala de aula. Uma dica
que fez toda a diferença naquele vestibular. Um aprendizado que ajudou a
resolver um problema fora da escola. Ou uma coisa que você disse
despretensiosamente e mudou uma forma de pensar, influenciou uma decisão
de carreira ou até mesmo salvou uma vida. Se você está em sala de aula,
pode ser que nem saiba, mas com certeza já marcou ou ainda marcará a
vida de alguém (e por motivos, geralmente, que vão além da sua
disciplina). E é muito provável que você, professor, também tenha sido
marcado por um docente ao longo da sua trajetória escolar e
universitária. No caso de Danúbia, foi um sorteio feito por uma
professora que também tinha uma sorveteria e sorteou cupons para trocar
por sorvetes. “Eu tinha 13 anos e era o último dia de aula. Foi a
primeira vez que tomei sorvete. Isso me marcou muito. Até hoje, sempre
que eu tomo sorvete, me lembro dela”, conta a professora. Hoje, é ela
quem é lembrada por seus alunos que se deparam com determinados livros
de literatura.
8) Sempre sai um dinheiro do seu bolso para comprar materiais para a turma
Que
professor nunca abriu sua carteira para xerox, para fazer um trabalho
diferente, garantir o mínimo de material necessário para que as crianças
pudessem desenvolver uma atividade ou simplesmente fazer um agrado para
a molecada em uma data especial? “Toda professora, independente de ser
escola pública ou particular, já gastou ou gasta um dinheirinho para
fazer seu trabalho”, diz Lorena. Em algumas escolas, por falta de
recursos, o corpo docente por vezes necessita até mesmo comprar materiais básicos para o seu trabalho, como giz.
Outras, para evitar o gasto de tempo da aula com cópias da lousa (e aí a
xerox ou impressão entram na conta do professor). Muitas vezes, a verba
é para apoiar o desenvolvimento de um trabalho mais atraente e dinâmico
com os alunos. Mas, dependendo do caso, pode ser até para fazer uma
alegria para alunos em situações econômicas difíceis. “Essa semana, fiz
uma vaquinha para comprar bolo para um aluno que fazia aniversário e os
pais não tinham como pagar. Esse tipo de coisa é comum”.
9) Nem sempre o professor tem razão
A
ideia de que o professor é o único detentor do conhecimento já caiu por
terra. Mas o que nem todo mundo conta (ou gosta de admitir) é que o
professor também erra: nem sempre ele tem todas as respostas, nem sempre
ele tem os reflexos mais corretos para resolver as situações
imprevisíveis que surgem em sala ou a melhor atitude para lidar com um
comentário ou comportamento inconveniente. A verdade é que, como
qualquer outro ser humano, eles estão sujeitos também a não ter sempre
razão. “Acontece muito”, revela Danúbia. Uma vez, a professora não
concordou muito com o teor de um dos textos escolhidos para representar a
escola em uma Olimpíadas de Língua Portuguesa. “Era um texto de opinião
e eu quis mudar porque achava que feria a lei. A dona do texto disse
que não mudaria porque era a opinião dela e não abriria mão disso. Mesmo
discordando refleti sobre isso e pensei que tinha feito um bom trabalho
já que ela tinha se apropriado do gênero textual e me questionado sobre
a mudança”. Além de refletir, dependendo do caso, vale reconhecer o
erro e se desculpar com o aluno ou turma em relação à atitude.
10) A identidade de professor te acompanha em todos os lugares
Às
vezes, são os outros que não te enxergam fora desse papel. “Uma vez eu
comentei em uma turma de Educação Infantil que minha vó iria me visitar
em casa. Eles perguntaram: você tem casa? Você tem vó?”, lembra Lorena.
“Parece que eu sou um robozinho que só é professora!”. E, se, às vezes,
as crianças conflitam sobre a “dupla” identidade dos professores, muitas
vezes são eles mesmos que não te deixam esquecer da sala de aula. Se
você mora próximo da comunidade em que leciona ou em uma cidade pequena,
é provável que com frequência esteja andando distraído pela rua ou
utilizando serviços e seja interrompido por alguém chamando “professor”.
Em outros casos ainda é você quem está tão nele que não consegue se
desvincular do papel. Alguns familiares e amigos de Lorena, por exemplo,
dizem que ela tem um “tom de professora” ao falar. “Eles dizem: você
não está mais na sala de aula!”.
11) A formação continuada não era bem como você imaginava
“Muitas
vezes quando eu estava na faculdade, imaginava que terminaria o curso e
depois faria uma pós e ficaria tranquila”, conta Lorena. Mas os planos
de Lorena não se seguiram exatamente assim… em sala, ela foi percebendo
que precisava de mais informações e desenvolvimento do que a faculdade
tinha oferecido. Assim, diante das necessidades que surgiam, ela foi
correndo atrás dos temas em um desenvolvimento profissional constante.
“Hoje eu vejo que a formação continuada é essencial e muito ligada ao
que está acontecendo comigo e às necessidades da minha turma”, pondera.
Di Gianne concorda que ela é fundamental para o professor não só ir
vencendo as lacunas da formação inicial, mas ir se aprimorando na
prática do que já conhece. “Se o professor quer sobreviver na profissão,
ele tem que gostar de se atualizar e ser criativo. A aula que eu daria
há 10 anos nunca é a mesma que eu dou ano após ano”.
12) Você nunca imaginou a quantidade de doenças que compartilharia com as crianças
Depois
da pré-adolescência você jamais poderia imaginar que pudesse ser vítima
de situações comumente relacionadas às crianças. “Eu nunca imaginei ao
optar pela carreira docente que fosse pegar piolho, tanta conjuntivite
ou virose. Já perdi vários chás de cozinha das minhas amigas porque
estava com virose”, fala Lorena. “Aos poucos, seu corpo vai criando
resistência. Esse ano, eu não fiquei muito doente, mas peguei algumas
gripes da turma!”. Mas, de acordo com Danúbia, não são só as doenças que
são compartilhadas pela sala toda. “Toda vez que alguém vai embora,
todo mundo chora. Quando tem um término, todo mundo se sensibiliza”,
diz.
13) Improvisar também faz parte do trabalho
Você
planejou aquela aula, mas entrou na sala de aula e… não tinha lousa
disponível. Ou um acontecimento entre a turma ou no noticiário mudou
tudo. Não dá para simplesmente ignorar e seguir o planejamento ou
cancelar tudo. “O professor tem que agir na emergência, estar atento ao
que vai vir e utilizar aquilo como ponto positivo, sem medo”, aconselha
Di Gianne. “Já aconteceu comigo de estarem reformando a lousa e não
poder usar. Decidi usar a área externa da escola como lousa e fui
desenhando no chão. A gente vai aprendendo todo dia e se aprimorando”.
14) O período de férias escolares parece longo só para quem está olhando de fora
O
sonho de ter três meses de férias parece ser a realização máxima do
equilíbrio entre trabalho e descanso, certo? Mas, as atividades para
além da aula em si e o desgaste da sala de aula vai mostrando que não é
bem assim a vida de professor. “Não imaginei que professor trabalhava
tanto! As pessoas jogam na minha cara que tenho duas férias, mas eles
não sabem a quantidade de tarefas da escola que a gente leva pra casa!”,
desabafa Lorena. No início da carreira, a relação meses trabalhados e
de descanso até parecem mais equilibradas… “Até meu quinto ano de
carreira, eu achava tranquilo. Hoje, com o tempo, a rotina e o cansaço,
quando chega as férias eu estou esgotada”, diz Danúbia.
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