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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

" A Atual Configuração das Mesas Lá na Praça é Vergonhosa, Pois Deixa Claro a Exclusão a Que é Submetida a Maioria da População " Marcia Susana

"E me preocupa o papel da igreja católica que tenta camuflar sua omissão no episódio."

Marcelo: Como foi sua infância no Distrito de Rocha Cavalcante, a Barra do Canhoto?

Marcia Susana: Foi uma infância tranqüila e feliz, rodeada de amigos e familiares. O fato de ser um lugar pequeno com poucas características de urbanização proporcionou segurança e tranquilidade, desta forma, favoreceu a vivência de uma infância com mais liberdade permeada de relações afetuosas.

Marcelo: Com quantos anos sua família saiu da lá? Você continuou visitando o lugar?

MS: Quando minha família se mudou para União dos Palmares, eu tinha 12 anos de idade. Após a mudança continuei visitando todos que lá deixei, pois os vínculos afetivos com amigos e familiares perduravam.

Marcelo: Foi fácil para você se adaptar aqui em União?

MS: Não foi fácil me adaptar aqui, pelo fato de ser adolescente e todo o meu círculo de amizade estar em Rocha Cavalcante.

Marcelo: O que você lembra-se da época estudantil?

MS: Lembro da alegria da descoberta, o gosto de aprender conteúdos novos, fazer amizades, participar de um time de handball, representar a escola na quadrilha de São João, participar das Feiras de Ciências me instigavam a superar limites.

Marcelo: Você terminou o magistério e logo começou a lecionar. Você foi influenciada pela sua mãe, que é professora?

MS: Sim, mas iniciei dando aulas de reforço com colegas, isso aconteceu durante um ano porque logo em seguida precisei parar para dar continuidade aos estudos na capital. E sobre a influência da minha mãe foi total, pois por intermédio dela comecei a ter contato com as atividades de docência. A experiência, dedicação e paixão com que exercia a docência sempre me fascinou, e foi decisiva para a escolha da minha profissão.

Marcelo: Qual a sua formação?

MS: Pedagogia, especialização em formação para a docência e Mestrado em Educação Brasileira.

"E seguramente ouso afirmar que ainda se estabelece a tentativa de anulação de nossa identidade negra."

Marcelo: O que você vem desenvolvendo na área da educação atualmente?

MS: Trabalho com formação de professores. Estou desenvolvendo a função de Articuladora Pedagógica da Educação Infantil e Professora Formadora do Programa de Formação Inicial para Professores em Exercício na Educação Infantil – Proinfantil, e atualmente ministro uma disciplina no Curso de Pós-Graduação em Matemática.

Marcelo: Por que você não desenvolve esse projeto aqui em União?

MS: O trabalho de formação de professores requer a iniciativa do poder público para disponibilizá-la ao corpo docente, e no caso do Proinfantil que é um Programa do Governo Federal, é necessário que o governo local assine um Acordo de Participação com o Ministério da Educação.

Marcelo: Você já se decepcionou com alguma coisa em sua profissão?

MS: Não diria decepção, mas fico triste, preocupada e angustiada com o descaso com a educação e a ausência de políticas públicas comprometidas com as classes populares que são as que mais necessitam do serviço público, isso sempre me indignou.

Marcelo: Em que momento você se interessou pela questão do negro?

MS: Certamente foi quando tive a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a história local, a história e riqueza da minha ancestralidade e pude redescobrir minha identidade. Um marco nesse processo de redescoberta foi uma formação para coordenadores pedagógicos do município que ocorreu em 2003 na Secretaria Municipal de Educação.

Marcelo: Na condição de pedagoga e mestre em educação, qual a visão que você tem de como as relações étnico-raciais são estabelecidas no espaço escolar e fora dele?

MS: Lamentavelmente essas relações ainda ocorrem permeadas por discriminação e naturalização do preconceito racial que é camuflado por uma falsa democracia racial. A ausência de uma política pública de reconhecimento e valorização das identidades dos diferentes sujeitos étnico-raciais cria espaços favoráveis a perpetuação de posturas etnocêntricas e assimilação de estereótipos e preconceitos atribuídos ao povo negro. Sobre essa temática posso facilmente elencar inúmeros comentários, por isto criei o blog com o fim de apresentar minhas análises do contexto social e educacional.

Marcelo: A lei que implementa a disciplina de cultura palmarina no município de União teve você e outras pessoas a frente de um movimento para a sua efetivação. Porém é visível que a disciplina carece de um trato especial para com as fundamentações teóricas que embasam os documentos legais federais tais como a lei 10.639, Diretrizes Curriculares Para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e da Cultura Afro-Brasileira e Africana, o estatuto da Igualdade Racial e outros. A que se deve essa carência?

MS: Sobre a disciplina quero destacar que a Lei Municipal, assim como a Lei Federal preconiza a inclusão no currículo escolar da rede municipal, de temáticas ou conteúdos relativos ao estudo da história do município e da raça negra (este último no caso da lei municipal), não propõe a criação de mais um componente curricular, contudo, a disciplina existe e é evidente as dificuldades do corpo docente em efetivar uma educação de reconhecimento e valorização das relações étnico-raciais. Essa lacuna se deve basicamente a ausência de uma política comprometida com a valorização de nossa história e ancestralidade (referindo-me ao povo negro e indígena) visando a superação das relações hierarquizantes, discriminatórias, excludentes e opressoras ainda estabelecidas em nosso município.

Marcelo: Quanto a lei que implementa o estudo para o trato com as questões étnico-racial dentro da disciplina de cultura palmarina, é possível perceber que ela ainda necessita de referencias teóricas para embasar a prática de muitos professores do município. A que se deve essa necessidade: a um grupo que de fato esteja presente na Secretaria de Educação que discuta com embasamento teórico sólido e prático as questões étnico-raciais no espaço escolar? Ou seria falta de investimentos, compromisso para com as questões étnicas e culturais do qual nosso município esta submetido?

MS: Ao tempo em que você questionou você também apresentou as justificativas, sem dúvida o principal fator é a falta de uma política pública local preocupada e comprometida com a valorização dessa identidade da população, os demais fatores subsidiam ou decorrem deste fator, como: o distanciamento da história local com a história do Quilombo dos Palmares, o não-reconhecimento de nossa ancestralidade negra e indígena, as relações discriminatórias, técnicos educacionais com formação na área, o imaginário e trabalho dos docentes que inferiorizam essas questões, falta de investimento, a ausência da implantação e implementação de um projeto substancial na área educacional, que consolidam a ausência de informação e deficiência de formação dos profissionais educacionais.

Marcelo: Por que a maioria dos palmarinos não se identifica com a cultura negra?

MS: Mediante pesquisa constatei que esse trabalho de não identificação foi iniciado pela coroa portuguesa em meados do século XVIII, mediante o envio do português Domingos José de Pino, com a missão de recolonizar a localidade dentro dos padrões europeus e aniquilar todo e qualquer vestígio da organização quilombola. A partir daí teve início um forte processo de anulação do reconhecimento da identidade negra na população local, ao ponto de, nos dias atuais muitos se referirem a história de nossa ancestralidade como a “história dos negros”. E seguramente ouso afirmar que ainda se estabelece a tentativa de anulação de nossa identidade negra.

Marcelo: Em sua opinião o que falta na cidade para alavancar o turismo?

MS: Uma política, consequentemente, um projeto substancial que não esteja pautado só na lógica do capital.

Marcelo: Você já foi integrante da associação da AGRUCENUP?

MS: Não, pois não faço parte de nenhum grupo cultural.

Marcelo: Como você vê a atuação da mesma em nossa cidade?

MS: A AGRUCENUP sempre buscou se estabelecer, contudo, hoje se configura como uma aglomeração de grupos culturais e lamentavelmente falta o compromisso com as questões sociais que oprimem nosso povo negro, consequentemente, desenvolver um trabalho social.

Marcelo: O que acha do trabalho da Fundação Cultural Palmares aqui em União?

MS: Acredito que com o tempo poderemos visualizar mais claramente a efetivação da política nacional, mas sabemos que o compromisso da Fundação Palmares é com a Serra da Barriga, as ações locais cabe ao governo e a população.

Marcelo: Qual foi a sua participação na campanha de sua irmã Marciângela Gonçalves para prefeita do município?

MS: Contribui com a construção do plano de governo na área educacional, que é o que conheço melhor.

Marcelo: Qual sua avaliação de toda a campanha?

MS: Excelente, pois não feriu os princípios nos quais acreditamos.

Marcelo: Você é seletiva em relação a amizades?

MS: Completamente, pois sou criteriosa quanto aos princípios que devem embasar a amizade, amigos são pedras preciosas, tesouros de valor inigualável.

Marcelo: Você tem um filho de 15 anos, como é seu relacionamento com ele?

MS: O melhor possível, nossa relação sempre esteve pautada no respeito e companheirismo.

Marcelo: Marciângela é uma tia coruja?

MS: Sim, afinal tem apenas um único sobrinho.

Marcelo: Encontrei você na festa de Santa Maria Madalena, o que achou do evento esse ano?

MS: Animada, mas extremamente conflituosa, e isso é muito bom, pois as grandes mudanças sempre decorreram dos conflitos, e já é tempo de repensar a organização de alguns elementos dessa festa, pois não atende a maioria da população local, e afinal a festa é para a população.

Marcelo: Qual é sua opinião sobre o espaço das mesas lá na praça?

MS: A atual configuração é vergonhosa, pois deixa claro a exclusão a que é submetida a maioria da população, e embora seja demonstrada preocupação com o fato, não há uma ação que demonstre a valorização dos diferentes sujeitos que precisam ser respeitados, e me preocupa o papel da igreja católica que tenta camuflar sua omissão no episódio.

" A AGRUCENUP sempre buscou se estabelecer, contudo, hoje se configura como uma aglomeração de grupos culturais e lamentavelmente falta o compromisso com as questões sociais que oprimem nosso povo negro, consequentemente, desenvolver um trabalho social."

Marcelo: O que faz nos seus momentos de folga?

MS: Nos momentos de folga procuro conviver mais com meus familiares, mas gosto também de ir ao cinema, a praia, teatro, pintar, escrever, viajar e recentemente aprender a tocar violão.

Marcelo: Continua pintando seus quadros?

MS: Sim, mas devido ao pouco tempo disponível estou demorando mais tempo para concluir uma tela.

Marcelo: Você tem um blog, (Marcia Susana) do que se trata? Você o mantém atualizado?

MS: Trata de produções pessoais sobre as diferentes temáticas com as quais me identifico que são: educação, etnia, formação de professores, escola, racismo, identidade, responsabilidade social. Sobre a atualização, não o fazia com freqüência, mas este ano tenho a pretensão de inserir produções ao menos quinzenalmente.

Marcelo: Márcia, muito obrigado. Gostaria que você deixasse suas considerações para os leitores do blog.

MS: Fico feliz Marcelo com a existência de espaços de informação e comunicação como esse, democrático, diversificado e que demonstra preocupação e valorização de nossa identidade. Aos leitores, AXÉ! Somos mais fortes do que pensamos.