Pages

sábado, 16 de junho de 2012

Machado de Assis! Por Paulo Veras


Você deve ter o seu autor favorito... Estou, é claro, considerando que você é um bom leitor e que tem um conhecimento vasto o suficiente para ter um autor favorito – pode ser pré-conceito, mas estou supondo que o leitor de um blog como este tem determinado perfil que se encaixa nesses requisitos. O meu é Machado de Assis, que dá título a esta postagem mais por falta de outro. Como você logo verá, o texto de hoje não tem nada propriamente a ver com Machado de Assis.

Mas mesmo considerando que você seja um leitor com um conhecimento razoável, não posso cobrar-lhe que conheça o meu autor favorito. Por isso, para dar aquela velha e boa contextualizada, devo dizer-lhes que o meu autor favorito, Joaquim Maria Machado de Assis era um mulato pobre, filho de escravos forros, que aprendeu francês sozinho, publicou seu primeiro poema na adolescência, casou-se com uma mulher “impura” (o que na época era sinônimo para não-virgem), tuberculoso e tinha tantos empregos quantos textos era capaz de escrever por semana.

Esse é o lado menos nobre de Machado, é claro. Para louvá-lo, você vai achar facilmente que ele era admirador e admirado pelo imperador D. Pedro II ou que foi fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, numa época onde o número de alfabetizados no país era tão ínfimo que ter acesso a um livro era quase um luxo. Além disso, ele foi o fundador do realismo no Brasil, com um livro que é até hoje o meu favorito: Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Estou ciente que “Memórias” já assustaram muitos estudantes de Ensino Básico país a fora. Eu as li pela primeira vez quando tinha entre 10 e 11 anos. O volume me foi oferecido pela minha mãe e, devo confessar, demorei um bocado até assimilar a linguagem (até então, eu era acostumado a tirinhas e quadrinhos; nunca tinha me aventurado nos livros). Ainda assim, “Ao verme, que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver, dedico, como saudosa lembrança, essas memórias póstumas.”, a falsa dedicatória que abre o livro, me encantou na época de uma forma tão singular e atemporal como ainda encanta hoje. Devorei o livro em alguns dias.

Mas eu prometi que esse texto não seria sobre Machado, e já é hora de parar de introduzi-lo para dizer que o que me seduz nos textos desse autor é o realismo com que ele descreve a vida humana e suas tragédias, a cara de pau com que nos desconstrói com suas verdades, e o cinismo com que expõe nossas reais intenções, nem sempre tão belas. Dito de outra forma, eu admiro a coragem de Machado de Assis, de ser tão direto e tão audacioso para o seu tempo a ponto de fazer nascer uma nova escola literária.

Fui trazido a esse assunto porque essa semana estava lendo um belíssimo texto de um amigo digital (aqui). E curiosamente, nessa mesma época uma outra amiga (mais real e que eu conheço há bem mais tempo) inaugurou seu novo espaço online (aqui). E devo dizer que adoro o trabalho de ambos, e mais das vezes essas letrinhas parcas que voam da tela para minha consciência me fazem ganhar o dia. Mas ambos tem uma escrita bastante subjetiva, como os que tiveram o interesse de clicar nos links desse parágrafo vão poder perceber, e não é algo que se esgota neles.

Na verdade, tenho visto bons jovens leitores se arriscarem nas palavras de forma tão introspectiva e subjetiva e me pergunto onde estará o espírito de Machado de Assis de publicitar as nossas fraquezas e jogar na cara o lado mais podre do nosso ser. Fico pensando que é um “mal” dessa geração, que tem tudo tão exposto, tão escancarado, que numa simples conexão (cada vez mais sem fios) tem acesso a tudo, da mais incrível obra de arte do Louvre (visitas virtuais podem ser feitas no site do museu, aqui) a mais baixa pornografia.

Só posso imaginar que num mundo onde tudo está tão exposto, o que resta para nós é nos trancafiarmos nas nossas mentes como rota de fuga. Só que este lugar não é só deserto, escuro, desconexo e úmido, como se encerra infinitamente num processe de obliteração inacabável. Até certo ponto, esse mundo sequer existe. Por isso, uma vez por ano (geralmente em setembro, mês da morte de Machado) me vejo obrigado a voltar àquelas “Memórias”, deixar os confins da minha mais intrínseca intimidade e dar um arejada na mente no mundo exterior; ainda que seja um mundo eternamente paralisado no século XIX.

Não importa, ele – e sua coragem de jogar na cara as putrefações da vida humana – ainda me fazem tão bem quanto há dez anos atrás. E talvez também seja uma boa alternativa para vocês, bons leitores de conhecimento vasto o suficiente para terem seus próprios autores favoritos.

Blog Inominável Mundo de Paulo