As crianças do Muquém esperam por um futuro mais justo a partir de agora Foto: Cid Barbosa
União dos Palmares Os moradores da comunidade
quilombola do Muquém, em União dos Palmares (AL), jamais esquecerão o
dia 18 de junho de 2010. Essa data representa um divisor entre o estado
de completo abandono em que viviam e a chegada do "socorro", como
ressaltam os líderes comunitários. Paradoxalmente, a metamorfose
aconteceu depois que o Rio Mundaú encheu e derrubou 52 casas. Muitas
pessoas conseguiram se salvar trepando em duas jaqueiras que hoje são
reverenciadas como "sagradas" por todos ali.
A partir do que poderia ter se configurado como uma grande tragédia, os
órgãos públicos, enfim, se "sensibilizaram" com os problemas que
afligiam historicamente o Muquém. Nada menos do que 120 imóveis do
programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, foram construídas
para abrigar igual número de famílias. As outras 15 (de um total de 135)
não foram contempladas por opção própria, pois se encontram numa área
de maior segurança e preferiram não se mudar.
"As chuvas sempre
causavam transtorno. Já estávamos acostumados a conviver com essas
adversidades. No entanto, em 2010 a situação se tornou desesperadora e,
por muito pouco, muita gente não morreu", destaca a presidente da
Associação dos Remanescentes do Quilombo do Sítio Muquém, Albertina
Nunes da Silva.
Salvação
Entre os que se salvaram, muitas
histórias de desespero, medo e solidariedade. O relato de Michele
Pereira da Silva, 28, é impressionante. Ela subiu numa das jaqueiras com
os dois irmãos por volta das 17h30 do dia 18 de junho de 2010, e só
conseguiu descer por volta das 4 horas da madrugada do dia seguinte.
"Foi
apavorante. A gente pensou em se salvar indo para a caixa-d´água, o
ponto mais alto da comunidade. Só que vimos que não valeria a pena, pois
a água já passava da nossa cintura e subia bem ligeiro. Demos as mãos
uns aos outros e viemos nos puxando para os pés de jaca. Ao todo, 25
pessoas se salvaram", conta Michele sem esconder a emoção pelo ocorrido.
Conforme
seu relato, até mesmo uma mulher gestante de sete meses, que não
conseguiu alcançar a parte mais alta da jaqueira, e três crianças, se
seguraram nos galhos e suportaram a fúria das águas. Por conta desse
episódio, as duas árvores, mesmo parcialmente tomadas por parasitas e
cupins, são preservadas e até reverenciadas pela comunidade.
"Depois
que tudo aconteceu, as pessoas passaram a vir aqui para fazer orações
não só em agradecimento como também para pedir algumas graças", conta
Michele que revelou estar à procura de um primo para se casar e manter a
tradição entre os quilombolas.
Já Albertina, que é casada também
com um primo, mostra-se preocupada com os filhos, Nelson, 18, e Luís
Alberto, 16. "Temo que, por causa dessa coisa de globalização, eles não
se interessem em manter os nossos costumes. Em relação a casamento, por
exemplo, dizem que vão em busca de moças de outras comunidades, não
necessariamente quilombolas. A exemplo de outros jovens, não se
interessam muito pelo nosso passado. O que desperta o interesse deles
são coisas como computadores, antenas parabólicas, motocicletas e
telefones celulares".
História
Os moradores de Muquém, em
sua grande maioria, são parentes. O casamento entre primos é uma
constante entre esses quilombolas que chegaram ao local há
aproximadamente 250 anos, fugidos da Serra da Barriga. "O início de tudo
foi a partir da união da senhora Balbina com Cassimiro Bezerra. Camila,
uma das três filhas do casal, se apaixonou por Leopoldino Nunes e
tiveram nove filhos.
Albertina recorda que, "na época da minha
mãe e dos meus avós, nós cultivávamos tradições, como o samba de coco.
As mulheres vestiam saias típicas e, com um balde na mão, dançavam. Em
seguida, chamava o cavalheiro para dentro da roda. As festas em família
eram muito gostosas. Hoje em dia, se você fizer algum tipo de
comemoração, a primeira pergunta que se faz é ´qual a banda que vem
tocar´. Isso é muito triste". Para Albertina, as coisas começaram a
mudar a partir de 2004, quando a comunidade foi oficialmente reconhecida
pelo governo.
"Até então, enfrentávamos todo tipo de
dificuldade. Nos primeiros anos, começamos a nos inteirar de nossos
direitos. Mas, na prática, foi a partir da enchente que os órgãos
públicos se sensibilizaram. É uma pena que tenha acontecido dessa forma e
com tanta demora. Mas, temos que olhar para a frente. A nossa luta
maior agora é pela titulação das terras, o que nos dará a posse
definitiva sobre elas. Até que isso aconteça, não estaremos totalmente
seguros".
Artesanato
A quase tragédia que assolou os
moradores do Muquém inspirou dona Irineia Rosa Nunes da Silva, 65 anos,
mãe de 11 filhos e dez netos, e que herdou da sua mãe a arte do
artesanato, a fazer peças tendo como tema a sobrevivência durante a
enchente de 2010 nos pés de jaca.
"Já perdi a conta de quantas
vezes reproduzi a peça da salvação. Quando as pessoas que visitam o
Muquém tomam conhecimento da história ficam impressionadas e encomendam
logo o trabalho", enfatiza dona Irineia. Sua fama já extrapolou as
fronteiras de União dos Palmares. Orgulhosa, frisa: "Já me apresentei em
feiras em Maceió e em outros lugares", acrescenta. Até um parente da
princesa Isabel me comprou uma peça".
O seu trabalho foi
reconhecido pelo governo de Alagoas. Dona Irineia ganhou a Ordem do
Mérito dos Palmares. Também concorreu a um prêmio da Unesco. "Foi muito
importante esse prêmio e essa participação. Nasci e me criei aqui. Não
posso e não quero negar a minha origem. Espero que, no futuro, as novas
gerações sejam mais respeitadas do que a minha e daqueles que nos
antecederam".
O futuro se apresenta um pouco mais promissor para o
Muquém. Isso, se forem cumpridos à risca os projetos que estão em
andamento desde a "bendita" enchente. Estão sendo construídos 120
imóveis dentro do "Minha Casa, Minha Vida", uma escola, um centro
econômico, uma casa de farinha, um local para os artesãos, uma praça e
uma nova sede para a Associação.
Apesar de tudo, Albertina lembra
que há ainda muita coisa a se fazer. "São séculos de espera. Os
prejuízos, em todo esse tempo, são incalculáveis. Várias gerações dos
nossos ancestrais sofreram. Uma das minhas principais preocupações hoje
ainda é em relação ao transporte. Aqui, principalmente à noite, é
difícil transportar uma pessoa. Quem tiver necessidade, precisa pagar R$
24. É um valor absurdo".
Zumbi dos Palmares
Entre os anos
de 1597 e 1694 funcionou, na Serra da Barriga, em União dos Palmares,
então zona da mata da Capitania de Pernambuco, hoje Alagoas, distante
92Km de Maceió, o Quilombo dos Palmares, o maior e mais importante
reduto de resistência à escravidão do Brasil, localizado 500 metros
acima do nível do mar.
Lá, se refugiavam negros, índios e alguns
brancos fugitivos. Em novembro de 1985, o local foi tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico-Artístico Nacional (Iphan). Só mais
recentemente, em 2006, o Parque Memorial Quilombo dos Palmares foi
estabelecido.
A região, de rara beleza natural, abriga diversos
espaços que retratam a trajetória e o modo de viver dos refugiados. As
histórias são narradas por personagens negros contemporâneos em
português, inglês, espanhol e italiano.
O espaço Ganga-Zumba, por
exemplo, é descrito pela historiadora Patrícia Mourão, na voz do ator
Tony Tornado: "Palmares, já somos uma nação e eu sou seu rei. Holandeses
e portugueses tentaram nos destruir durante muitos anos, mas em vão.
Com ervas, curamos todos os males. Acolhemos e abrigamos todos que
anseiam por liberdade. A cada nova expedição, nossos inimigos se
fortalecem. Até quando resistiremos? Eles querem um pacto de paz: será a
nossa sobrevivência ou a nossa destruição".
Uma das atrações
mais emblemáticas é o mirante de Atalaia de Acaiene, em homenagem ao
filho de Ganga-Zumba. No local, diante dos avanços das tropas inimigas,
"centenas de guerreiros iniciaram a fuga estratégica e planejada.
Travando um combate sangrento, muitos se jogavam num despenhadeiro,
preferindo a morte ao cativeiro".
Lá, ao lado de um baobá trazido
da África, foram depositadas as cinzas de Abdias Nascimento, ativista
negro e um dos maiores defensores do povo afrodescendente no Brasil,
falecido em 2011, aos 97 anos.
FERNANDO MAIA
REPÓRTER