domingo, 27 de abril de 2014
A tatoo de Thiago Alexandre
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Tatoo
História de Zumbi dos Palmares ganha nova cronologia
Em
1678, o então rei dos Palmares firmou um acordo de paz com o governador de
Pernambuco, a autoridade máxima sobre um território que englobava os atuais
estados da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, além de Pernambucano. A
negociação durou alguns meses e envolveu intérpretes, envio de embaixadas,
presentes e libertação de prisioneiros. De um lado, Ganazumba (ou Gangazumba),
tio de Zumbi, séculos depois apontado como símbolo da resistência contra a
escravidão; de outro, dom Pedro de Almeida, governador prestes a voltar para
Portugal.
Até
agora pouco estudado e comentado pela historiografia, o episódio vem ganhando
contornos mais definidos sob a luz de documentos originais, boa parte deles
inéditos. O material, manuscrito, inclui cartas, despachos de conselheiros do
regente português, crônicas e até rascunhos encontrados em Portugal pela
historiadora Silvia Hunold Lara, professora da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), em pesquisa realizada no âmbito do Projeto
Temático“Trabalhadores no Brasil: identidades, direitos e política (séculos
XVII a XX)”.
A
documentação tem permitido que Lara e outros historiadores tracem uma nova
cronologia sobre Palmares. “Em geral, a historiografia periodizou a história
palmarina a partir das guerras feitas contra eles. Procuro me concentrar na
formação dos mocambos [os assentamentos de fugitivos] e entender como eles se
organizavam em termos políticos e militares”, disse Lara àAgência FAPESP.
“A
década de 1670 é importante porque marca o reconhecimento por parte das
autoridades portuguesas e coloniais desse sobado (estado africano) em Palmares.
Os termos do acordo negociado em 1678 constituem a maior evidência disso”,
disse a historiadora.
Em
seus estudos, Lara retoma teses de uma vertente da historiografia que dá ênfase
às raízes africanas de Palmares, na qual se incluem os brasileiros Nina
Rodrigues (1862-1906) e Edison Carneiro (1912-1972) e os norte-americanos
Raymond Kent (1929-2008), Stuart B. Schwartz e John Thornton.
De
acordo com Lara, um documento-chave para entender Palmares é uma crônica
anônima, com data atribuída a 1678, escrita logo depois do acordo de paz selado
entre Ganazumba e o governo de Pernambuco, quando d. Pedro de Almeida volta a
Portugal e vai mostrar seus feitos às autoridades portuguesas.
“É
uma crônica extensa, que faz uma história de Palmares, desde o seu início até
1678. Dá nome aos mocambos, descreve as relações entre os chefes militares e os
chefes dos mocambos, conta as expedições feitas e equipara a uma conquista
militar a vitória [parcial] obtida em 1677 por uma expedição que destrói os
mocambos e está na origem do acordo de paz”, disse.
O
grande ponto, segundo a professora titular do Departamento de História da
Unicamp, é que essa crônica sempre havia sido lida pelos estudiosos a partir de
uma publicação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de
1859 – feita quase 200 anos após ser redigida.
“As
pessoas não viram o original, que estava perdido nos arquivos. Quando você olha
o original, pode ver que houve transcrições incorretas”, disse Lara. Um bom
exemplo é o dos nomes das lideranças palmarinas e dos principais mocambos ali
descritos – com diferenças em relação aos consagrados pela historiografia.
“A
maior parte de quem lidou com Palmares trabalhou com uma documentação impressa.
E quem transcreveu e publicou fez uma seleção. Ao ir às fontes e aos arquivos,
localizei uma quantidade muito grande de fontes ao redor desses documentos
transcritos, muitas nunca publicadas”, disse.
Os
achados estavam no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, em Lisboa, e na biblioteca pública da cidade de Évora, interior de
Portugal.
Saindo
da trilha dos Imbangala
Lara
também parte de um trabalho publicado em 2007 por Thornton e pela historiadora
Linda Heywood, da Boston University, nos Estados Unidos, sobre a história das guerras
na África Central para estudar quem eram os africanos escravizados e trazidos
para o Brasil que fugiram e acabaram se organizando em agrupamentos em vários
pontos de uma extensa região nordestina ao norte do Rio São Francisco,
caracterizada por matas de palmeiras.
“Hoje
conseguimos saber com um pouco mais de precisão quem eram as pessoas trazidas
para cá: muito provavelmente eram falantes de kimbundu, língua africana da
região do então reino de Ndongo, que ocupava o que hoje é uma região de
Angola”, disse.
Dos
vários assentamentos de fugitivos – todos conhecidos nessa época como palmares
–, um deles em especial se consolidou durante o período da ocupação holandesa
(entre 1630 e 1654), formando uma rede de mocambos que se tornou conhecida
depois como Palmares. Nove mocambos chegaram a abrigar no total cerca de 11 mil
habitantes, de acordo com algumas fontes.
“Todo
mundo diz quilombo dos palmares, mas a palavra ‘quilombo’ é empregada
deslocadamente nesse contexto e é anacrônica para designar Palmares. A palavra
empregada naquele período para designar ‘assentamentos de fugitivos’ é
mocambo”, afirmou Lara.
Segundo
a historiadora, “kilombo” é uma palavra africana que significa “acampamento de
guerra”, usada pelos grupos nômades guerreiros Imbangala, da África Central.
Historiadores como o norte-americano Stuart Schwartz, da Yale University,
consideraram que a formação dos quilombos nas Américas estava relacionada a
esses acampamentos guerreiros – daí a origem do termo.
“Mas
acho que essa não é uma matriz da formação dos assentamentos dos fugitivos no
Brasil. Os kilombos Imbangala tinham rituais específicos, com morte de
crianças, serragem de dentes e canibalismo. Como eram nômades, não tinham uma
ligação territorial nem as linhagens que davam a legitimidade do poder,
diferentemente do que ocorreu nos mocambos do interior de Pernambuco, onde se
formou um reino linhageiro”, disse Lara.
Os
mocambos se organizavam segundo uma gramática política centro-africana,
explicou a pesquisadora. Como nos sobados centro-africanos (os potentados
locais da África), os chefes políticos dos mocambos do Nordeste mantinham
relações de parentesco entre si e todos estavam subordinados a Ganazumba,
conhecido como rei dos Palmares. “Esse sobado que se formou no interior de
Pernambuco foi reconhecido pelas autoridades coloniais como um poder político
independente, com o qual se podia negociar”, disse.
Mudança
para Cucaú
A
pesquisadora conta que a ideia de as autoridades coloniais fazerem acordos com
fugitivos sempre existiu – e não apenas no Brasil. O de 1678, porém, foi o que
mais progrediu. Boa parte dos habitantes dos mocambos de Palmares mudou-se para
uma aldeia criada especialmente para recebê-los, Cucaú, e eles foram
considerados livres.
A
paz, no entanto, não durou mais do que dois anos. Uma parte dos mocambos,
liderada por Zumbi, rejeitou o acordo e ficou em Palmares. Seguidores de
Ganazumba, como seu irmão Ganazona, participaram de buscas para trazer os que
haviam permanecido no mato. Ganazumba termina assassinado e Cucaú, destruída,
provavelmente por tropas coloniais. As pessoas que moravam lá voltaram à
condição de escravos.
“A
história contada até hoje sobre Palmares é uma história militante e toda ela
converge para o enaltecimento da figura de Zumbi como a grande liderança que jamais
se curvou e resistiu à escravidão até ser morto em 1695; as pessoas reiteram e
usaram a mesma documentação para dizer mais ou menos a mesma coisa”, ressaltou
Lara. “Essa história passa muito rápido pelo acordo de paz. Tão rápido que os
termos do acordo nunca foram publicados nas coletâneas de documentos feitas
sobre Palmares.”
Interessada
em discutir as formas de dominação nesse período e o modo como africanos e
indígenas lidaram com o domínio colonial, Lara recupera de todas as formas o
acordo. “A história de Palmares, da maneira como a estamos estudando, ajuda a
entender como a dominação colonial foi enfrentada e modificada pela ação dos
índios e dos africanos na África e no Brasil.”
Com
o auxílio do Projeto Temático FAPESP, Lara e sua equipe montaram uma base de
dados sobre Palmares, organizada de forma a ser disponibilizada para consulta
pública on-line. Cerca de 2 mil documentos foram digitalizados e aos poucos
estão sendo transcritos. “Espero que, dentro de dois anos, tudo esteja aberto
para o público”, disse.
Diversos
bolsistas também produziram trabalhos relacionados à produção da base de dados.
Um deles foi a monografia de graduação "Guerras contra Palmares: um estudo
das expedições realizadas entre 1654 e 1695", de Laura Peraza Mendes, que
ganhou prêmio de melhor monografia de graduação do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Unicamp em 2011.
Mendes
defenderá sua dissertação de mestrado, que contou com Bolsa
Fapesp em agosto de 2013.
Lara
agora trabalha para transformar em livro a tese “Palmares & Cucaú: o
aprendizado da dominação”, com a qual se tornou professora titular.
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