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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Blogueiro de Murici entrevista a artesã Irinéia Nunes


Note que a entrevista do blog com os artesãos é extremamente reveladora... Revela técnicas de trabalho, dificuldades que Irinéia passou, seus problemas familiares e todas as barreiras enfrentadas pra chegar até aqui. Mesmo sendo um recorte histórico da vida da artista que não abrange a maioria de suas experiências, não deixa de ser um trabalho que levanta um perfil de Irinéia, sendo uma contribuição para conhecermos um pouco dela como ser humano, em suas falhas, acertos e anseios, e não apenas como patrimônio imaterial. Mas, chega de papo... Vamos lá!

     Dona Irinéia, atualmente a senhora está trabalhando em quais peças?

Dona Irinéia – Eu to fazendo uns barros pra decoração, mas de vez ou outra eu levanto umas estátuas também, pra não esquecer... Vou fazendo umas coisas diferentes pras pessoas que chegarem se agradar, né?!

     Eu soube de um Zumbi gigante que vocês fizeram, não é?! Ele até se dividia em duas partes.

Dona Irinéia – Faz tempo. Faz tempo esse. Fizemos e ele subiu pra Serra da Barriga, tá com quase 3 anos.

*Nesse inicio de entrevista, dona Irinéia ensina técnicas para deixar o barro mais resistente, seja queimando-o ou aplicando uma goma na peça, técnica que ela mesma desenvolveu. Ela diz que é preciso tomar cuidado, pois a peça crua não aguenta água e se desmancha, por isso o barro deve ser queimado para ter segurança, consistência, no sol ou na chuva. O segredo de dona Irinéia é criar experiências, suas próprias fórmulas e testa-las, na expectativa que funcionem ou que cheguem perto do ideal.

     Quanto tempo a senhora trabalha nesse ofício?

Dona Irinéia – Tá com uns 34 pra 35 anos. Do tempo que eu vivo com ele (senhor Antônio) foi o tempo que eu descobri a arte e continuei trabalhando.

     E a senhora perdeu na enchente, de peças que a senhora faz, alguma coisa?

Dona Irinéia – Perdemos, meu filho. A gente perdeu umas 1.000 peças ou mais. Nós tava já trabalhando pro mês de novembro, né?! Ia juntando aquelas peças que, de vez em quando, vem gente de Maceió e compra de quantidade pra levar pra aquelas barracas na beira da praia pra vender. E já tinha até encomenda que a gente tava trabalhando. Esse senhor já tinha mandado dinheiro avançado e nós tava caprichando pra quando queimasse... Aí o homem vir buscar. Aí foi o tempo que houve essa cheia aí e levou as peças e a gente teve que fazer um empréstimo pra devolver o dinheiro do homem.

*Nesse momento, um dos trechos da gravação ficou confuso, mas dona Irinéia havia explicado que foi ajudada por uma cunhada, que se desenvolveu bem no trabalho e contribuiu no ofício, fazendo as peças com muita rapidez. Em média, fazia de 40 a 50 peças por dia e dona Irinéia ajudava no acabamento.

     Os traços nas peças trabalhadas pela sua cunhada eram parecidos com o da senhora?

Dona Irinéia – Parecia sim. Depois da enchente o marido dela morreu e ela ficou desgostosa com o trabalho, ela também perdeu sua casinha. Os traços eram parecidos, mas eu é quem dava o acabamento. Ela fazia o corpo dos bonecos e deixava pra nós dar o acabamento. Ela ajudava muito porque tinha mais ligeireza na mão.

     Sabe uma coisa interessante que nós estávamos conversando aqui ontem, dona Irinéia e seu Antônio? É que eu vi um vídeo de nome “Dona Irinéia, a Senhora do Barro”, com 6 minutos de duração. Nesse vídeo a senhora fala um pouco dos traços desses bonecos. Como surgiu a ideia na cabeça da senhora pra fazer esses traços? Parecem bonecos da mesma família, não é?

Dona Irinéia – Vem daquele lá de cima. Antes de eu fazer as peças grandes, eu fazia assim... Uns tipos de cavalos, boi, tudo pequenininho, coisa de criança brincar, né?! Fazia aquelas coisinhas tudo miudinhas. Ninguém dava essas importâncias. As vezes ficavam era mangando, diziam que eu tava era fazendo boneco de macumba.

Aí, depois chegou um senhor de Maceió, parece que ele mora na Serraria, e ele foi dando ideias pra mim fazer peças maior. Aí eu comecei a fazer. Ele mandou eu continuar fazendo aquele serviço e ele é que ficou comprando. As vezes eu dava o preço baixo e ele dizia que eu não sabia dar preço e aumentava (risos)... E foi me orientando, me orientando... Também o povo do SEBRAE chegou lá no início me dando explicação e eu fui me desenvolvendo, mas ninguém nunca chegou pra pegar o barro e dizer “faça assim, faça isso...”. E graças a Deus que hoje eu to reconhecida até fora do Brasil.

     Qual a dificuldade de lá, dona Irinéia? Estão precisando de que pra continuar esse trabalho bonito que vocês fazem?

Dona Irinéia – Meu filho, o barro nós temos... A maior dificuldade da gente era lenha, mas depois da enchente até que conseguimos. Até das bandas das usinas...  Ele (seu Antônio) foi falar com os trabalhador que a lenha que eles não usassem eles dessem... E foi logo onde a gente passou a noite, por riba dessa madeira (durante a enchente). Serviu pra nós passar a noite.

*Aqui, o fotógrafo da exposição, Thiago Alexandre, ressalta um dos problemas vividos pelo casal de artesãos: a existência de uma pocilga. Diz ele que lá perto do lugar da produção tem um cheiro insuportável, que é um problema pra quem trabalha, além de afastar compradores.

     Quando a senhora chegou aqui, a senhora disse que demora um pouquinho pra produzir, pelo fato de serem só vocês dois, não é isso?!

Dona Irinéia – É. Demora. Mas a gente já tem uma porção de peça em casa. E tamo trabalhando pra ver se daqui pra janeiro a gente enche uma fornadinha, porque ele (seu Antônio) fez um forno grande que dá pra mais de 2 mil peças. Cheio mesmo a gente não consegue fazer não, pois leva muita peça...

Também, nessa casa que a gente trabalha só dá pra produzir até 10h00 ou 11h00, porque esquenta muito. Aí, depois de 15h00 por diante, quando abaixa a temperatura, é que a gente aguenta ficar lá.

     Então, se melhorar o lugar de trabalho a produção seria maior, né?! Pois dava pra aguentar mais.

Dona Irinéia – É. Mas tão fazendo... Já tão levantando outro lá perto das casas novas (novo local de trabalho) e é mais na beira da estrada (boa localização).  Já tá bem encaminhado.

      Vocês gostaram desse novo lugar?

Dona Irinéia – Sim, gostamos. Mas ele (seu Antônio) só vai estranhar a tirada do barro (o barro é transportado por carro de mão). Esse lugar que tão fazendo vai ficar tipo uma loja, com cada um (produtor) com seu quartinho, vamos queimar as peças e por lá pra vender. Tipo uma loja. Até ontem uma menina tava me explicando, que vai ficar bonito. Vão fazer um local detrás pra gente trabalhar e a lojinha fica na frente.

     Gostaram do pessoal que veio visitar a exposição hoje (estudantes)? Aqui em Murici a gente precisa estimular mais o interesse por esses trabalhos.

Dona Irinéia – A gente gosta. Óia, as vezes nós fica perdido naquele lugar (local de trabalho). A gente fica perdido, homem (risos). Um chama pra um lado, outro chama pro outro e a gente fica que nem doido no meio do pessoal. Tem deles que ainda compra umas pecinhas, e as vez só querem fazer pesquisa, né?! Não levam nada... Mas eu atendo todo mundo!

    Dona Irinéia, tem peças que são vendidas de quanto a quanto? A partir de que preços?

Dona Irinéia – Meu filho, tem de R$1,00, que é as peça miudinhas... É R$20,00, é R$25,00, R$30,00, R$40,00, R$50,00... As peças que tem mais caras é de R$200,00, R$250,00, depende do tamanho da peça, né?! Antigamente eu não tinha preço pra vender as cabeças... Eu decidia o valor na hora. Mas depois o pessoal foi me incentivando, pra mim procurar um preço melhor, pra eu dar valor ao meu trabalho, né?! Óia, a gente vende cabeça lá até por R$20,00, mas eles vendem em outros lugares, em São Paulo, até por R$100,00.

Depois da cheia, a gente fez uma peça de duas cabeças. Um mestre de capoeira se agradou dela e ele (seu Antônio) vendeu por R$100,00. Depois a gente recebeu um telefonema dizendo que essa minha peça tava lá fora por mais de R$1.000,00.

Ontem mesmo chegou um senhor que foi olhar o meu trabalho e quando viu os livros e revistas ele até disse “Mas já ganharam pouquinho dinheiro nas suas costas, né dona Irinéia?”, e eu disse “Ah, meu filho. Se eu fosse fazer as contas já era pra eu ter um bom carro na porta... Mas fazer o que?”. Ainda dou graças a Deus por sustentar o meu pão de cada dia, que até aqui nunca faltou. E tenho fé em Deus que nunca vai faltar.

     A senhora consegue sobreviver vendendo essas peças?

Dona Irinéia – Dá não. Dá não. Sou aposentada mais ele (seu Antônio). Não dá por conta da família, né?! Se fosse só nós dois dava tranquilo. Agora comigo, tenho uma filha solteira que tem três filhas. E tenho uma filha que mora em Maceió que tem três filhos e um marido desempregado que adoeceu e não pode mais trabalhar. Só não morreu de fome porque todo mês nós temos que mandar uma cesta básica pra ele. Ele trabalhou 8 anos numa lanchonete e o que ele apanhou? Doença! Semana passada ele tentou se matar.

    Qual a maior dificuldade hoje pra senhora preservar a arte e dar continuidade ao seu trabalho?

Dona Irinéia – Meu filho, o que eu queria era que alguém se interessasse, né?! Se interessasse na minha arte pra eu passar e ajudar a fazer, mas ninguém quer. Eu recebo pelo patrimônio vivo do Governo, se não fosse isso... Foi uma benção que eles fizeram comigo, pois se fosse só a aposentadoria não dava pra mim ajudar a família e comprar as minhas coisinhas pra dentro de casa, né?! Aí, eu já ganho pra ensinar, mas ninguém se interessa.

     Como a senhora vê essa falta de pessoas interessadas pela sua arte? Um trabalho tão singular, tão importante, e não se vê as gerações futuras dando valor, querendo participar, querendo dar continuidade ao seu trabalho?

Dona Irinéia – Óia, pode dar valor as pessoas de fora, mas os de lá mesmo (União dos Palmares) não dá não. Tem tanta gente jovem lá, mas ninguém se interessa não. Se eles se interessassem seria uma benção.

*Esse aspecto cria outra dificuldade. Dona Irinéia recebe mais convites de interessados de outras regiões. Assim, como tem que sair de União dos Palmares, não tem carro pra transportar mais peças. Ela diz que se houvesse um carro para a comunidade, levar e trazer essas peças seria mais fácil.

     Como a senhora vê esses jovens do Coletivo A Fábrica, interessados na sua arte divulgando a senhora enquanto patrimônio vivo e divulgando suas obras?

Dona Irinéia – Meu filho, é importante, né?! É importante a gente saber de uma coisa e ter divulgação, pra ter reconhecimento em outros cantos. Eu queria sair mais pra outros cantos assim, conhecer outras pessoas, outros trabalhos, mas não tem quem leve. Só esses meninos (Coletivo A Fábrica) que tão se interessando por mim, né?! Eu até agradeço a eles.

     O que esse reconhecimento te trouxe?

Dona Irinéia – As pessoas vão muito lá, né?! Vão fazer pesquisa, me perguntar como eu comecei. Tem uns que ajuda e outros que só vão pra fazer pesquisa mesmo. Mas eu atendo todo mundo do mesmo jeito. Essa semana chegou uns alunos lá e todo mundo se agradou da jarrinha de flor. Uma menina comprou uma de R$2,00 e disse “se eu tivesse com dinheiro eu ia levar uma pra minha mãe” e eu disse “Tome, minha filha! Leve, enrole e bote dentro da bolsa. O dinheiro que você me deu já é uma ajuda. Só esconda direito pros outros não vê e querer também” (risos). Aí ela saiu tão alegre!

      A gente tem aqui em Murici um pessoal muito talentoso trabalhando com artesanato. Muitos desistem por falta de estimulo.

Dona Irinéia – Óia, lá mesmo num só sou eu que mexo com barro não, mas o trabalho das outras é mais as panelas, pois a tradição era mais as panelas. Mas de uns certos tempos morreu. Só o povo mais velho que entende que compra, mas com essa tradição de panela de alumínio se acabou o interesse.

*Dona Irinéia, durante vários momentos da entrevista, nos contou sobre os momentos difíceis que viveu em um antigo casamento, sofrendo com um ambiente de violência familiar e todos os tipos de maus tratos ocasionados pelo marido alcoólatra, que havia sido internado diversas vezes. Esses aspectos de sua vida preferi não relatar em todos os detalhes na entrevista, por ser algo doloroso para os entrevistadores e entrevistados e por alterar o foco de felicidade a que estamos celebrando. O que pode ser dito é que esse sofrimento foi ao lado de seus três filhos, a quem Irinéia jamais se desapegou, mesmo quando recebeu propostas para dá-los. Com seus 20 e poucos anos, e 11 de casada, Irinéia enfim tomou coragem para se ver longe daquele terreno hostil. Num dia, seu então marido se embebedou. Tomada pela esperança de uma nova vida e seguindo os apelos de seu filho de apenas 6 anos de idade, Irinéia fugiu do local. Nesse período, estavam ela e os filhos em Juazeiro. Irinéia relatou que passou três meses lá, pedindo esmolas. Conseguiu encontrar uma viúva que também pedia esmolas, mas que lhe cedeu abrigo em uma casinha humilde. Passados os três meses, Irinéia tinha juntado dinheiro para voltar a Alagoas. Retornou ao Muquém, onde vive até hoje. Passou quase 2 anos sozinha, criando seus filhos, até se juntar com o senhor Antônio, após ele ficar viúvo. Esse casamento já dura 35 anos.

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