"Lá vêm os negros do Muquém. Se
fazem tanta questão do quilombo, por que não ficam lá?" Mais de 20 anos
depois, frases assim ecoam na cabeça da professora Ângela Maria Nunes,
nascida e criada no Muquém, comunidade formada por famílias de
descendentes de quilombolas no interior de Alagoas.
Era isso que
ela e os amigos ouviam quando iam à escola na sede do município de União
dos Palmares, na Serra da Barriga, a mesma região onde por cerca de um
século resistiu o Quilombo dos Palmares.
Com a queda do quilombo,
em 1695, os negros que sobreviveram se espalharam. Segundo a tradição
local, o Muquém surgiu quando cinco irmãs negras desceram a serra, se
esconderam na área perto do rio (Muquém viria de amuquecar ou amoquecar,
com o sentido de esconder-se, fugir) e ali passaram a viver.
O lugar foi oficialmente reconhecido em 2005 pela Fundação Palmares como uma comunidade de remanescentes do antigo quilombo.
"As
pessoas conheciam a história do quilombo e eu também. Mas não
importava. Éramos os negros do Muquém, os negros do cabelo duro.
Evitavam a gente, e abaixávamos a cabeça", lembra Ângela, descendente
direta de Camila Nunes, a primeira das cinco irmãs negras a chegar ao
lugar.
Aos 37 anos, Ângela é professora da educação infantil na
Escola Municipal Pedro Pereira da Silva, que funciona dentro da
comunidade quilombola. A escola tem 382 alunos da comunidade do Muquém e
135 espalhados nos núcleos da Serra da Barriga. Oferece até o 9º ano do
ensino fundamental. Não tem telefone, só internet.
A diretora, Maria Luciete Santos, que assumiu o posto em 2013, é
entusiasta da história local, mas relata dificuldades. Diz que, embora
os jovens conheçam a história, demonstram às vezes desinteresse pelas
tradições negras.
"Eles têm baixa autoestima. A gente tem feito um
trabalho de autoestima para eles saberem a história e o quanto são
importantes. Não dão valor ao que eles realmente são. Eles são
remanescentes do quilombo de fato, vêm de uma história das raízes de
Zumbi de fato e de direito. Mas não dão valor", conta a diretora.
A
Comunidade Quilombola do Muquém hoje abriga cerca de 170 famílias,
todas ou quase todas aparentadas, descendentes das cinco irmãs. Alguns
membros da comunidade casaram-se com brancos, e há crianças loiras na
escola.
Muitos jovens, segundo a diretora, ainda têm vergonha de
suas tradições, como a fabricação de objetos de cerâmica, e dizem que
não querem sujar as mãos de barro. Na batalha diária para conquistar
alunos e pais, a escola investe em aulas e cursos que valorizam a
história e tradições negras, como dança do coco e capoeira. Em toda a
rede municipal foi incluída a disciplina Cultura Palmarina, com foco na
história da cidade e do Quilombo dos Palmares.
Outra
descendente direta da fundadora Camila Nunes e, portanto, prima da
professora Ângela, é Albertina Nunes da Silva, merendeira da escola. Com
o apoio da direção, ela leva para a merenda ecos da culinária negra,
como mungunzá (um prato à base de grãos de milho, conhecido em boa parte
do Brasil como canjica branca) e pirão de peixe.
Está
participando de um concurso de culinária quilombola com uma receita de
família herdada de Camila: a cabidela de peixe, um assado de forno em
que a cabidela não é feita com sangue, como na galinha, mas com uma
mistura de legumes.
Albertina presidia a associação comunitária do Muquém quando a
enchente de 2010 veio e arrastou as antigas casas do lugar, inclusive a
dela. Só uma coisa ela salvou das águas, o título de reconhecimento da
comunidade como remanescente de quilombo, concedido pela Fundação
Palmares.
Mais de 50 pessoas escaparam da enxurrada subindo na
jaqueira que é hoje um dos pontos mais visitados pelos turistas que vão
ao Muquém. As casas e a escola foram reconstruídas em outro local, mais
longe do rio e fora da área de risco.
É numa dessas casas
coloridas que vive hoje a professora Ângela, a adolescente que não
gostava de seu povo. No ensino médio, uma professora de história
conseguiu convencê-la de que a luta de Zumbi não faria sentido se ela
tivesse vergonha de sua cor. "Eu odiava meu cabelo, minha pele. Aquela
professora me ensinou a gostar de mim, e aprendi a gostar do meu povo",
relembra.
Por uma nova história
Longe
do Muquém, outros professores se esforçam para contar a seus alunos uma
versão mais justa da participação do negro na construção do Brasil. Em
2003, uma lei tornou obrigatório o ensino, em escolas públicas e
particulares, de história e cultura afro-brasileira, aí incluída a
história da África.
Em 2008, uma nova modificação tornou
obrigatório também o estudo da história indígena. Entre professores
ouvidos, a opinião unânime foi de que, se o tema da cultura negra no
Brasil cresceu de tamanho e importância nos livros, a história do
continente africano ainda é pouco trabalhada.
Coordenador de
vestibular do Colégio QI, com unidades em vários bairros do Rio de
Janeiro, o historiador Renato Pellizzari, 34 anos, avalia que o grande
desafio é tirar o estudo da África da visão eurocêntrica, segundo a qual
o continente só surge nos livros quando os portugueses iniciam sua
expansão colonial.
Pellizari entende que falta ainda um material mais direto sobre o tema, embora liste livros que têm ajudado no trabalho, como A África na Sala de Aula: Visita à História Contemporânea, de Leila Leite Hernandez. As escolas também investem em cursos e palestras sobre o tema para capacitar os docentes.
Uma
história contada pelo professor Marcos Dezemone, com passagens por
vários colégios particulares, dá ideia do abismo racial no ensino
privado.
"Não faz muito tempo, num intercâmbio escolar
Brasil-França, vieram para um colégio do Rio vários alunos franceses, a
maioria negros. Os alunos brasileiros se surpreenderam com o fato de
haver negros entre os franceses. E os franceses, por sua vez, pensaram
que tinham sido enviados para uma escola só de brancos", relata ele, que
leciona nos cursos de história da Uerj (Universidade do Estado do Rio
de Janeiro) e na UFF.
"Alunos às vezes perguntam por que estudar
África, mas é preciso que saibam que o negro tem um papel fundamental na
construção do país. Trouxe, por exemplo, técnicas de pecuária extensiva
e mineração de ouro. Os africanos eram profundos conhecedores do
trabalho com o ouro e já dominavam a técnica de pré-aquecer o forno,
hoje uma coisa banal para nós", afirma.
Professor do turno noturno
da Uerj, Dezemone destaca que a universidade, graças a uma lei aprovada
em 2001, tem cotas raciais e para alunos de escolas públicas, o que
hoje lhe confere um perfil mais popular. Há mais negros nos bancos
escolares, inclusive no curso de História. Muitos serão os primeiros de
suas famílias a possuir diploma universitário.
Longe da Uerj, de volta ao Muquém, a professora Ângela chega para
mais um dia de trabalho. Ela e a irmã também serão as primeiras da
família a ter diploma universitário.
Ângela concluiu o magistério e
cursa pedagogia na Uneal (Universidade Estadual de Alagoas). Mãe de
Henrique Fernando, de 9 anos, Nandiel, de 7, e Luiz Inácio, de 3,
batizado em homenagem ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Ângela
diz que, desde seu tempo de escola, muita coisa mudou – principalmente
ela mesma. Ainda sente o preconceito, mas tenta ensinar aos alunos e
filhos o orgulho de suas tradições.
Pensa na professora de
história que transformou sua forma de encarar a vida e começa mais uma
manhã de aula. Se alguém apontar seus filhos e alunos na rua, dizendo,
"Lá vêm os negros do Muquém", quer que eles respondam sem abaixar a
cabeça, mas sim estufando o peito: "Sim, somos os negros do Muquém".
Fonte: BBC BRASIL
fotos: Thiago Alexandre