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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Morre o cineasta palmarino Simião Martiniano, o Camelô do Cinema



Passava das 6h da manhã desta segunda-feira (27), quando foi confirmada a morte de Simião Martiniano. Segundo seu registro de nascimento, ele tinha 82 anos,  mas garantia ter dois a menos. Simião vinha enfrentando um câncer no esôfago e estava internado na Santa Casa de Misericórdia, no Recife. 

Desde janeiro, quando passou mais de 20 dias internado no Hospital das Clínicas, o cineasta apresentava problemas de saúde. Mas, segundo a família, resistia para se submeter a exames e tratamentos. “Ele é teimoso demais”, reclamou, na época a filha Soni Moema, em entrevista a Mateus Araújo, repórter do JC.


Nascido em União dos Palmares, Alagoas, Simião Martiniano morava na comunidade Socorro, em Jaboatão dos Guararapes, com a esposa e uma neta. Ele chegou a Pernambuco aos 27 anos, e ficou mais conhecido após o documentário biográfico Simião Martiniano, o camelô do cinema, dos cineastas pernambucanos Hilton Lacerda e Clara Angélica. 

A obra de Simião é composta por oito longas: O herói trancado (1999); A rede maldita (1991); O vagabundo faixa preta (1992); A mulher e o mandacaru (1994); Traição no Sertão (1996, originalmente filmado em super-8, em 1979); A moça e o rapaz valente (1999); A valise foi trocada (2007); e, o mais recente, O show variado (2010).

Espacial: Do camelódromo para o mundo da ficção

 
Sem nunca haver trabalhado com equipamento profissional, o camelô Simião Martiniano já produziu e dirigiu oito filmes. Enquanto a Fundarpe investe até R$ 230 mil em projetos de audiovisual, ele gasta uma média de R$ 1,5 mil por produção, gravada em VHS. 

Fenômeno singular na atual produção audiovisual de Pernambuco, Simião Martiniano, 70 anos, conhecido como o camelô do cinema, já produziu oito filmes, entre curtas e longas-metragens, a maioria rodada de forma artesanal em VHS por falta de dinheiro para filmá-los em película. Do início, há quase três décadas, até hoje ele nunca gravou com equipamento profissional de cinema e nenhum desses filmes, dos quais trabalha como escritor, produtor, diretor e, às vezes, ator, foi lançado em circuito comercial. À margem do sistema, Simião realiza os trabalhos na base do mutirão e exibe suas produções na rua, em colégios, associações ou cinemas municípais.

Exibindo e comercializando suas produções num box que mantém no Camelódromo do Recife, no Centro, o cineasta-camelô lembra que, antes de chegar a projetar um filme no circuito alternativo de cinemas municipais, a apresentação era nas ruas. "No início, a gente alugava os projetores de Super 8 e mostrava o filme em telões na rua mesmo, lá em Jaboatão (dos Guararapes, no Grande Recife)". Os ingressos cobrados, na década de 80, tinham preços irrisórios - equivalentes hoje R$ 0,50 e R$ 1.

Antes de chegar a seus próprios filmes, Simião Martiniano começou fazendo ponta como ator, ainda quando era mestre de obra no início dos anos 60, no Recife. "Um colega do trabalho me convidou para fazer uma ponta no filme Quando o gigante desperta, de Pedro Teófilo. Eu fazia um soldado holandês. Na metade do filme, acabou o dinheiro e a gravação foi interrompida", conta, sorrindo. Na segunda tentativa, outra polêmica: "Terminou a gravação do filme Luciana, a comerciária, de Mozart Cintra, mas a censura não permitiu a exibição". Nesta época, Simião fez um curso de cinema de seis meses com o diretor dos filmes.

Se as experiências como ator começaram frustradas, as de produtor seguiram o mesmo caminho. Simião escreveu e produziu a radionovela Minha vida é um romance (que também se transformou em um cordel), mas o que estava planejado para acontecer em 100 capítulos durou apenas cinco. "Aí se chamou doidice, viu... Eu gravava dentro de casa mesmo", lembra. Simião Martiniano, então, adaptou o roteiro da novela para o seu primeiro filme, Traição no Sertão (1979), que mistura ficção com parte da sua história. 

Gravada em Super 8 de uma forma amadora e com vários problemas de edição (como cortes bruscos nas imagens), Traição no Sertão custou o equivalente hoje a R$ 1,5 mil. "Os atores, que são meus amigos, trabalharam de graça e até pagaram para atuar. Os equipamentos também eram deles", diz o aposentado, que vive com um salário mínimo por mês mais cerca de R$ 200 das vendas no Camelódromo.

Mesmo com a precariedade dos filmes e os acabamentos modestos, Simião e toda a equipe que atua junto a ele são devidamente registrados no Conselho Federal de Cinema. Eles formam o Grupo Cineteatro Clênio Wanderley. As fitas do cineasta-camelô, ainda ignoradas pela maior parte do púiblico local, "mistura gêneros estrangeiros e elementos nordestinos com enredos de inspiração autobiográfica e popular", como afirma o radialista André Carlos Heliodoro, estudioso da "obra martiniana".

MAZAROPPI

Fã do brasileiro Mazaroppi e elegendo o filme O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, como o melhor de todos, Simião, contraditoriamente, não vai ao cinema. A última vez foi no fim da década de 70. Atualmente assiste a filmes em DVD na casa onde vive, no bairro de Socorro, em Jaboatão, e também na velha televisão Sharp 14'', datada do início dos anos 80, instalada no seu box. E é no videocassete da barraca que ele coloca continuamente suas produções. Seus filmes estão à venda ao preço de R$ 20, para pernambucanos, a R$ 30 ("Para pessoas de fora", explica). "Se não tiver uma cópia na hora, a gente providencia", apressa-se em dizer o camelô, que comercializa também fitas VHS e vinis usados.

Em 1998, Simião foi cinebiografado em Simião Martiniano: o Camelô do Cinema, dirigido por Clara Angélica e Hilton Lacerda, documentário vencedor do II Festival de Cinema do Recife naquele ano. Só assim ele ganhou algum prestígio, conseguiu patrocínios e chegou a participar do programa Jô Soares, na Rede Globo. Atualmente, os holofotes se apagaram, mas o cineasta-camelô continua produzindo. O curta O show variado, que recebeu incentivo de R$ 40 mil da Prefeitura do Recife, já foi gravado, mas a verba para editar ficou pequena. "Preciso que outro projeto seja aprovado para editar as filmagens", diz, esperançoso.

Apesar da falta de conhecimentos acadêmicos sobre a técnica e a estética do cinema, Simião possui um trabalho de ficção único nos gêneros de western, terror, artes marciais e comédia. Além de escrever, produzir e dirigir os filmes, ele também se arrisca como músico, cantando as trilhas sonoras. "Eu faço a cultura do Estado. Pela cultura que eu fiz, talvez eu merecesse mais reconhecimento. Até no Canadá eu sou conhecido. Sou um dos melhores cineastas de Pernambuco", gaba-se, orgulhoso. Como relembra Simião, o filme A valise foi trocada foi assistido por mais de 300 pessoas no meio da rua, em um telão montado pela TV Cultura em São Paulo. Época em que colhia ainda a fama vinda com o filme sobre sua vida.

por ISABELLE FIGUEIRÔA
do JC ONLINE