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quarta-feira, 26 de abril de 2017

A enchente e o poeta


A enchente arrasou as ruas, destruiu as casas e apagou registros de histórias de vida. Tais registros eram, por razões próprias de cada um, cultivados como objetos de estimação. Quando isso ocorre, impera a resignação. E mais nada.

Imagine que alguém lamentou desbragadamente nunca mais tocar a camisa do time autografada pelo centroavante que, muito tempo atrás, fez o gol do título daquele campeonato inesquecível. É, tem gente que preserva – e reverencia – todo tipo de utensílio que, a partir de um evento qualquer, misteriosamente, conquista o altar exclusivo à categoria do sagrado.

José Minervino Neto tem 31 anos, nasceu e vive no município de Branquinha, aqui perto de Maceió, entre os canaviais e o rio Mundaú. Ele foi uma das vítimas daquela enchente que causou estragos terríveis em Alagoas, durante o mês de junho de 2010.

Como se sabe, naquela temporada de chuva forte, várias regiões do estado foram afetadas de maneira dramática, com a destruição de centenas de imóveis, quedas de barreiras e de pontes, além de dezenas de mortos.

Minervino é poeta e, portanto, guardava um bocado de textos que vinha criando havia alguns anos. A casa em que morava, no entanto, foi embora com as tantas outras que desabaram pela força da enxurrada. Junto com tijolos, ripas, madeira e móveis, os poemas também sumiram entre papéis e arquivos virtuais no meio do lamaçal e da tragédia. Quase nada sobrou.

Sem drama. Mais ou menos sob a inspiração desse enredo – essa dedução é uma arbitrariedade do autor deste texto –, José Minervino reuniu seus versos (os poucos que sobraram e os que vieram passada a tempestade) num livro que sai agora com um título inapelável: Antes e Depois da Chuva.

Mas não espere lamentações e platitudes em torno do tal sentimento de perda, essas besteiras que pulverizam todo e qualquer texto, fale do que falar, tenha a forma que tiver. Como foi dito, nada de drama apelativo por essas páginas. O nível do que vemos aqui é algo quilômetros acima da média.

É uma estreia do barulho, como você e eu diríamos em horas de rasa inspiração. Fato é que a literatura acaba de ganhar, a partir de Alagoas, uma voz original e segura. Minervino deve ter lá sua maquinaria secreta para nos surpreender com esse conjunto de poemas nos quais sobriedade, contemplação e delírio nos remetem à essência das coisas, ao coração da linguagem.

TREVOADAS DE JANEIRO
Daí que sempre em janeiro
Deus estala os dedos
E chora um pouco
Corre cachorro,
Corre menino,
Corre todo mundo!
Lá vem o trovão
E as rajadas de chuva
Pra encher os brejos,
É tempo de Sebastião,
Santo guerreiro encarnado,
Nos defender do raio.

Fonte: Graciliano On-line