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sexta-feira, 6 de março de 2015

Volta às aulas

Nesta época do ano, após o carnaval, é que de fato, nós, professores, conhecemos todos os nossos alunos. Existe ainda, para algumas famílias, o hábito antigo de esperar a “semana” do carnaval – que pelo calendário resume-se a apenas uma terça-feira, para, enfim, mandar os filhos direito para a escola aqui na Terra Brasilis.
Especialmente, quando o carnaval acontece em fevereiro. É como se toda a estrutura escolar funcionando nada significasse – o ano escolar começa mesmo após o carnaval na mente destes pais desavisados.

Ledo engano, claro. Não preciso nem dizer. As aulas começam segundo o calendário e quem falta neste período chega atrasado, pega a matéria no meio, perde explicações cruciais.

Porém, não posso negar que o mau hábito persiste e que é agora que eu me ponho a pensar no meu material de trabalho principal, já que o tenho completo à minha frente – as mentes que se sentam diariamente nas centenas de carteiras em dezenas de salas de aula que visito regularmente.

Sempre fico meio saudosista nesses momentos – lembrando-me dos alunos que já partiram para outras etapas de suas vidas e que deixaram boas lembranças. Tantos queridos – João, Gabriel, Igor, Marlon, Flávia, Luana, Maria –  ex-alunos, sempre amigos –, mas cujas carteiras hoje são ocupadas por novos alunos. Outro João, outro Gabriel, outro Igor, outro Marlon, outra Flávia, outra Luana, outra Maria. Mas ao mesmo tempo permanecendo insubstituíveis em suas individualidades.

Essa semana mesmo, conversando com meu amigo Pedro – não ex-aluno, pelo menos, ainda não –, estava rememorando excelentes momentos que vivi com estes alunos – e tantos outros. O troféu de “Malvada Favorita”, as palavras guardadas no coração, os bilhetinhos enfiados entre as folhas de atividades, os recadinhos carinhosos nas provas – e não. Não estou falando apenas dos pequenos. Mesmo os grandes, adolescentes, tomam de seu tempo e criatividade para me fazerem pequenos agrados que são guardados com muito carinho. Sem contar os abraços, os beijos, as lembranças que sempre recebo como prêmios.

Sim. Todo início de ano é para mim momento de recordar o que passou em um processo que termina apenas agora, após o carnaval – e com isso, também, reavaliar posturas. É tempo de pensar no que deu certo, para fazer de novo, e no que deu errado, para buscar novas estratégias.

A vida do bom professor, ideal que venho perseguindo ao longo de todo o exercício da minha profissão, é o mesmo do bom médico, do bom engenheiro, do bom advogado – constante aprimoramento pelo estudo e pela prática.

Quando iniciei como professora 20 anos atrás, recebíamos alunos diferentes. Os pais mais presentes na vida de suas crias tinham tempo de ensinar a seus filhos conceitos básicos de educação e convivência. Hoje, esta lógica não se aplica – muitos pais não conseguem se dividir entre seus afazeres profissionais e a educação de seus rebentos (apesar de existirem aqueles que o fazem de maneira exemplar).

No caso dos que não conseguem, estes relegam todo e qualquer princípio a ser ensinado pela escola – como se a família nada representasse no aprendizado de valores. É a verdadeira terceirização da formação da moral, terceirização esta que só pode acontecer de maneira imperfeita, já que crianças ensinadas a respeitar os valores básicos de convivência desde cedo, fazem-no melhor.

Mas da forma como se processa a formação moral hoje há os que chegam até mesmo à adolescência sem saber que devem bater à porta, se chegam atrasados, e pedir licença para entrar, por exemplo. Não sabem que brincadeiras possuem o limite do bom senso. Desconhecem qualquer medida de hierarquia e respeito. Ignoram que devem se desculpar quando ofendem e pagar pelo que, mesmo sem intenção, quebraram.

Já ouvi muitas vezes de colegas professores: “Não recebo para isto!” – querendo dizer que em seu salário/papel não está incluso o ato de educar para o bom convívio social.  Eles pensam que o dever primordial para a educação moral é da família.

E nisto concordo. É mesmo ali que se começa a aprender tais regrinhas básicas.

Mas quando isto não acontece, professores devem apenas ignorar e cruzar os braços fechando os olhos, como querem alguns de meus colegas, para alunos que não sabem sequer o mínimo para viver em sociedade – demonstrar educação e respeito no trato com o outro?

Nem preciso dizer que discordo. Do mesmo jeito que o escultor deve trabalhar a madeira que recebe, nós devemos trabalhar as mentes que recebemos. E se, não importa a idade, elas ainda precisam ser moldadas para o mínimo da convivência, que seja. Melhor do que viver reclamando de uma realidade que, enquanto professor, se é capaz de mudar – mesmo que minimamente.

Emendei estas reflexões na conversa com meu amigo Pedro com outra – sobre o conceito do que vem a ser um bom professor.

Experimente perguntar-se: qual sua definição de bom professor?

Quando pedidos a definirem, não raro deparar-nos-emos com ideias como: o bom professor é o que dá muita matéria. O que passa muito dever de casa. É o temido que mantém o silêncio intacto durante toda a aula. Bons professores reprovam muito (ou dão muitas recuperações).  O bom professor ensina apenas a sua matéria. Mantém distância dos alunos evitando qualquer contato externo.

Se estas são definições do que vem a ser bom professor, tenho que dizer que venho falhando copiosamente.

Porque dentro do cronograma, procuro ministrar o que é suficiente para aquele dia. Nem a mais, nem a menos – senão as explicações necessárias não serão dadas e as dúvidas que surgirem não serão esclarecidas.

Também, assinalo tarefas em quantidade razoável, entendendo que elas servem para fixação – e que outros professores usam deste recurso. Ou seja, o aluno não pode ser sobrecarregado de atividades para casa – há que existir o bom senso.

Mais: prefiro ser respeitada a ser temida.

Temida, em última hipótese, quando a razoabilidade não prevalece – porque para tudo há consequência.

Mas o respeito é possível na larga maioria dos casos, especialmente, quando o professor, ciente de que ele é o adulto, e que, portanto, é ele quem deve dar primeiro o exemplo de respeito e educação estabelecendo limites claros desde o primeiro dia de aula.  (Aqui sempre faço um porém com meus alunos: ser tratado com educação e respeito não quer dizer nunca ouvir um “não” ou nunca ser chamado a atenção. Significa que vai ouvir “não” sempre que necessário; e será chamado a atenção sempre que exceder o limite – mas, sem ofensas, sem desrespeitos verbais).

Eu apenas sacramento as recuperações e reprovações necessárias, dadas a si mesmos pelos próprios alunos. Fica entendido que devem seguir estas etapas aqueles alunos que falharam no cumprimento de seu papel como aluno, esgotados todos os recursos pedagógicos possíveis. Sim, porque alunos também falham – como quaisquer outros seres humanos – e não há quem me convença do contrário nem quem impute a mim culpas que não me pertencem.

Enquanto professora, fica claro para meus alunos que há que haver respeito pela hierarquia – mas isso nunca significará para mim um abismo que me separe deles. Não raro compartilho com eles informações pelas redes sociais, outros assistem a ensaios da minha banda, trocamos e-mails, mensagens etc. Há aqueles que me procuram também com questões pessoais que gostariam de discutir, sendo sempre bem-vindos para isto, recebendo opiniões ponderadas, quando cabem, ou sendo encaminhados para os serviços oferecidos pela escola – psicólogos, psicopedagógicos – para a assistência necessária.

Assim, tenho me esforçado sempre para me colocar profissionalmente de uma maneira bem diferente do que é compreendido, às vezes, pelos próprios professores como sendo seu papel.

E é exatamente neste momento do ano que reflito no antes, no agora e no que haverá de ser – buscando sempre colocar-me dentro de um conceito aprendido na teoria e amadurecido na prática do que vem a ser boa professora.

E com isto, além de achar-me hoje satisfeita com os resultados que tenho obtido, ainda vejo-me pessoalmente satisfeita com as relações duradouras de respeito mútuo estabelecidas com meus alunos. E ex-alunos. Porque alguns deles permanecem como amigos para a vida.

Que este ano, portanto, reserve-me a continuidade do que é bom e a sabedoria para perceber o que não é – dentro e fora de sala.

Que assim seja.

Érica Araújo e Castro - Articulista Estadoatual
www.facebook.com/ericaaraujoecastro