É difícil educar sem impor sua vontade?
Há muito tempo, quando eu ainda era professor de graduação, tive
problemas com um certo colega de trabalho. Eu dava aula de algo chamado
“Estratégia Empresarial”, que é uma forma de determinar como as empresas
chegam ao lucro e o que fazer para melhorar.
Acontece que os alunos chegavam até mim, após passarem por esse
sujeito, professor de Direito (até onde me consta, podia até ser um bom
advogado), com colocações do tipo: “Professor, o professor de Direito
disse que lucro é ruim e só sobra para o patrão”; “Mas professor,
competição tira empregos das pessoas”. Eram coisas que comecei a escutar
como “fatos" relatados na aula de Direito.
Certa vez peguei uma prova do sujeito. Ele só falava de exemplos de
trabalho escravo, casos de assédio moral que beiravam o absurdo,
processo trabalhistas que fariam qualquer um querer pular de um
precipício. Não é de admirar que meus alunos, todos com vinte e poucos
anos, chegavam a mim achando que o mundo empresarial era uma safadeza
só. E lá ia eu, perder horas e horas de aula para desfazer a atitude
preguiçosa e covarde do sujeito.
Preguiçosa porque é muito fácil empurrar uma “verdade" qualquer a um
punhado de jovens em um contexto educacional. Basta apresentar seu lado
como “fatos" da vida. Preguiçosa porque, não tendo nada a ver com sua
matéria, o professor não apresentava o contexto das tais teorias da luta
de classes, não apresentava os contrapontos, não deixava os alunos
pensarem por si. Apresentava, de forma sutil e covarde, “o mundo como
ele é”, como se processos de trabalho escravo fossem a regra, não a
exceção.
Para quem gosta de um pouco de história, como eu, sabe que esse não é
um recurso novo. Prisioneiros de guerra por toda a história foram
obrigados a ressaltar as belezas do inimigo e delatar os horrores de sua
pátria natal. Na guerra da Coréia, por exemplo, era comum que
prisioneiros norte-americanos só tivessem algum conforto após declamarem
redações sobre as maravilhas do comunismo.
O cérebro é algo engraçado. Quando você recebe uma informação e a
declara em voz alta, algo muda e você passa a se identificar um pouco
mais com aquela ideia. Isso não é segredo. Aliás, o objetivo inicial de
muitas terapias é mudar nossa “conversa interna” para lidarmos melhor
com os problemas que enfrentamos.
Educação e a confiança dos alunos são coisas preciosas. Veja, caro
leitor, não estou dizendo que ideias diferentes não devem ser
apresentadas. No mínimo, alguém que tem um compromisso real com a
postura de professor, deveria mostrar os diferentes ângulos de uma
discussão. Pode até honestamente mostrar sua posição. Nunca, a meu ver,
apresentar algo como fato consumado da forma como meu colega fazia.
Se quisesse, o sujeito poderia muito bem desenvolver um curso a
respeito, se colocar como especialista no assunto para aí, sim, mostrar
determinado ponto de vista aos alunos interessados. Inserir sua visão de
mundo em outra disciplina é jogo baixo. É uma injustiça com alunos que
se matriculam em um curso com um objetivo e de repente recebem outra
coisa.
Estou contando essa história em meio a mais uma daquelas confusões
causadas pela prova do Enem. Algumas questões, diz-se, possuem viés
ideológico (a questão que cai na minha área de conhecimento, em que a
globalização teoricamente aumenta os níveis de desemprego no mundo é uma
bela porcaria, diga-se de passagem).
Os defensores de todos os lados dizem que estão exagerando, que a
coisa não é bem assim, ou que as questões sempre pedem aos alunos para
marcar a opção correta de acordo com o texto.
Bem, o “de acordo com o texto” é um comportamento tão ruim quanto os
soldados norte-coreanos pedindo aos inimigos para marcarem a “opção
correta” na hora de comer, ou meu colega covarde impondo sua versão
sobre o mundo em uma aula de direito empresarial. Se você é justo
consigo mesmo, não precisa impor sua visão de mundo dessa forma.
Eu não consigo deixar de comentar que, em uma prova que visa
determinar quem é mais apto a entrar em uma faculdade, políticos,
comentaristas e analistas terem tantas opiniões diferentes é um mau
sinal. Faz algum tempo que saí das salas de aula de graduação, mas, se
bem me lembro, preferia que meus alunos chegassem com um pouco mais de
domínio sobre matemática, lógica, língua portuguesa. As questões que
geram problemas são exercícios toscos de interpretação de texto.
O
aluno, mesmo não acreditando que a globalização causa problemas ou que
as mulheres são socialmente construídas, se vê forçado a marcar a opção
que lhe dará maior probabilidade de passar na prova. Questões complexas
que poderiam ser alvo de anos de estudo são relegadas a uma “certeza" de
acordo com um trecho curto.
Não sei em que isso ajuda a determinar se tal aluno será um bom
profissional no futuro. Sei que foi perdida uma bela oportunidade de
avaliar. É difícil educar sem impor sua vontade.
Fonte:
Fábio Zugman é professor universitário,
consultor e palestrante. É autor dos livros Empreendedores esquecidos
(Elsevier, 2011); Administração para profissionais liberais (Elsevier,
2005); Governo eletrônico: saiba tudo sobre essa revolução (Livro
pronto, 2006); O mito da criatividade (Elsevier, 2008); e coautor de
Dicionário de termos de estratégia empresarial (Atlas, 2009) e
Criatividade sem segredos (Atlas, 2010).
Veja também: www.zugman.com ou entre em contato pelo Facebook.
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